Rio de Janeiro, 22 de Dezembro de 2024

A geração que lutou pela democracia, soterrada pela realidade

Arquivado em:
Sábado, 10 de Julho de 2021 às 16:48, por: CdB

Nunca me acostumei com a desigualdade, a falta de liberdade, o preconceito, a desumanidade – não apenas por uma óbvia questão de princípios, mas por entendimento visceral da injustiça e da dor que dela decorre.

Por Maria Inês Nassif - de São Paulo
Foi entre quatro paredes que eu me senti definitivamente velha. Não me sentira assim antes, mesmo quando exausta das lutas diárias e intermináveis para estabilizar emocionalmente o meu mundinho privado e para enfrentar períodos de dificuldades econômicas. Carreguei na alma, durante toda minha longa vida e desde o meu primeiro entendimento do mundo, um profundo incômodo pela dor alheia.
geracao-68.jpg
"Eu e minha geração, que lutamos bravamente pela democracia, estamos sendo soterrados pela realidade", escreve Maria Inês Nassif
Nunca me acostumei com a desigualdade, a falta de liberdade, o preconceito, a desumanidade – não apenas por uma óbvia questão de princípios, mas por entendimento visceral da injustiça e da dor que dela decorre. Meu sofrimento privado sempre andou junto com um enorme sofrimento social. Lidei razoavelmente com ambos até que me vi do lado de dentro, apenas pressentindo a vida do lado de fora. A partir de então, nunca me vi tão velha, tão triste, tão revoltada, tão cansada do mundo. Eu e minha geração, que lutamos bravamente pela democracia, estamos sendo soterrados pela realidade.

Oxigênio

Foi do lado de dentro que vi a vida de milhões de pessoas serem ceifadas a céu aberto, sem a maior parte daquelas que sobreviveram entender que os mortos eram vítimas de um genocídio. Aos arrepios, constato que aceitamos, quietos, o armamento de potenciais milícias, destinado a manter um poder forjado na fraude e na mentira. Do meu apartamento assisto, horrorizada, à militarização do Estado civil e ao saque orçamentário levada a termo pelas Forças Armadas brasileiras em benefício próprio, enquanto milhões de pessoas morreram e morrem sem vacina, sem hospitais, sem oxigênio e sem comida. É no escritório de minha casa que leio diariamente as notícias das pessoas más que apoiam o destruidor do país porque ele empunha a bandeira de “acabar com o politicamente correto”, como se isso fosse bom. Matuto frequentemente sobre o uso da religião para controlar massas de adeptos ignorantes, extorquir o dinheiro delas e usá-las para conquistar o governo e dilapidar o Estado, enriquecendo líderes religiosos. Aflita, lido com a constatação de que as distorções eleitorais provenientes do radicalismo forçado pela direita, em sua macabra tática para derrubar governos democráticos e com preocupação social, produziram uma horda de parlamentares que fazem dos seus gabinetes um balcão de negócios milionários. Com pesar, vejo o péssimo serviço que o sistema judiciário fez ao validar golpe sobre golpe sobre a democracia brasileira, e torço para que o Supremo tenha de se redimir.

Ditadura

Todo dia tenho que enfrentar a realidade: a esfera pública foi tomada por pessoas vis; o programa de governo é o mal; todas as instituições, ministérios, agências e qualquer coisa do governo federal foram aparelhadas por militares, policiais, evangélicos, milicianos, especialistas em negócios escusos e executores de uma “limpeza” ideológica fascista; existe pacto de silêncio, entre os associados ao conglomerado que saqueia o Estado brasileiro, semelhante à ‘ormetà’ da máfia siciliana. E daí, entre quatro paredes, eu me lembro que estava grávida quando o primeiro civil assumiu o governo, depois de 21 anos de ditadura militar. 

Orgulho

Em 15 de março de 1985, mesmo com a notícia da morte do eleito pelo Colégio Eleitoral, Tancredo Neves, eu acariciei a criança que dormia em meu ventre e disse a ela, com toda convicção do mundo: “Você nunca terá que viver sob uma ditadura”. Eu tinha orgulho de pensar que fiz parte da luta pela democracia e a legava aos meus filhos. Hoje, já não me orgulho de mim. Minha criança primeira tem uma filha. Eu fico triste por não poder garantir às minhas duas netas que elas jamais viverão uma ditadura. Já não tenho mais essa certeza. E me sinto muito, muito velha por não poder dizer a elas, como antes dizia aos meus filhos, que lutarei até a vitória para que elas vivam, sempre, num país livre e justo. Lutarei, sempre. Mas não sei se terei tempo de entregar esse presente a elas. Maria Inês Nassif é jornalista.
Edições digital e impressa
 
 

Utilizamos cookies e outras tecnologias. Ao continuar navegando você concorda com nossa política de privacidade.

Concordo