Enquanto Bolsonaro questiona fatos sobre ditadura militar e glorifica seus agentes, decisão de tribunal federal reaviva tese de que crimes cometidos pelo regime devem ser julgados. STF é chamado a revisar Lei da Anistia.
Por Redação, com DW - de Brasília
Em 28 de agosto de 1979, entrava em vigor no Brasil a Lei da Anistia, que perdoou crimes ligados à ditadura cometidos por agentes do Estado e opositores do regime e marcou a transição para a democracia. Quatro décadas depois, o arranjo segue contestado em setores da sociedade e do Judiciário, que rediscute a impunidade de quem torturou e matou em nome da ditadura que vigorou de 1964 a 1985.
Uma decisão recente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, no Rio de Janeiro expôs o conflito. Em 14 de agosto, a Corte abriu uma ação penal contra um militar acusado de sequestrar e estuprar uma mulher presa na ditadura. Segundo o voto vencedor, o sequestro e o estupro, naquele contexto, não foram crimes comuns, mas atos desumanos, cometidos contra uma civil por motivos políticos –portanto, crimes contra a humanidade.
O conceito de crimes contra a humanidade foi elaborado pela primeira vez em 1945, pelos Tribunais de Nurembergue, criados para julgar líderes nazistas, e confirmado por tratados internacionais ratificados pelo Brasil, que têm força de lei. Esses crimes nunca prescrevem, e os Estados têm a obrigação de apurar, julgar e responsabilizar os autores.
Nesta quarta-feira, o Superior Tribunal de Justiça também avaliará se aplica o conceito de crime contra a humanidade a um caso ocorrido na ditadura. Os ministros da terceira sessão do tribunal decidirão se abrem ação penal contra seis militares acusados de planejar um atentado a bomba, frustrado, no centro de convenções Riocentro, em 1981.
O debate sobre a anistia tem como pano de fundo particularidades da transição para a democracia no Brasil e a política do Estado de reconhecer atrocidades cometidas pelo regime militar, a qual já foi atacada pelo presidente Jair Bolsonaro, que questionou fatos sobre a ditadura reconhecidos pelo próprio governo e glorificou seus agentes .
Transição sem penas
Uma tarefa de Estados que migram de ditaduras e regimes autoritários para democracias é lidar com os crimes cometidos por membros do regime anterior contra a população civil. Isso envolve apurar os fatos, reparar danos causados às vítimas e pacificar a sociedade, conjunto de práticas conhecido como justiça de transição. O objetivo é evitar que as violações se repitam no futuro.
Em alguns casos, há também penas para quem cometeu crimes. Isso aconteceu, por exemplo, na Alemanha pós-nazismo e no Chile e na Argentina após as ditaduras, onde houve punição de militares. Em outros, não há penas. Na África do Sul, após o fim do apartheid, agentes do Estado que contaram a verdade sobre seus crimes foram anistiados.
No Brasil, o governo concedeu indenizações, e a Comissão Nacional da Verdade (CNV), que funcionou de 2012 a 2014, apurou e divulgou fatos, mas não houve punição de responsáveis.
O advogado Pedro Dallari, ex-coordenador da CNV, afirmou à DW Brasil que o caminho percorrido pelo país até o momento repete seu passado de transições conservadoras, no qual mudanças de regime acomodam antigas estruturas.
– A casa real portuguesa se manteve à frente do processo de independência, e o primeiro presidente da República foi um marechal do Império – lembra.
A transição para a democracia também manteve representantes das Forças Armadas no gabinete ministerial. Do final da ditadura, em 1985, até 1999, os chefes da Marinha, do Exército, da Aeronáutica e do Estado-Maior eram ministros, e só então passaram a se subordinar ao Ministério da Defesa criado naquele ano. Os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff nomearam civis para comandar a Defesa, tradição abandonada a partir de fevereiro de 2018 por Michel Temer e por Bolsonaro.
– O Brasil tem esse jeitinho acomodador, que é sempre pior para o lado mais fraco: não se mexe nos interesses dos mais ricos, dos militares. Só se mexe um pouquinho, não se vai até as consequências importantes, e as coisas vão ficando abafadas", afirma à agência alemã de notícias Deutsche Welle (DW)a psicanalista Maria Rita Kehl, que também integrou a CNV.
Ela ressalta os interesses de classe em jogo nesse arranjo: "Quem cometeu crimes de lesa-humanidade, como a tortura, ficou impune; só os pobres vão para a cadeia, às vezes sem julgamento, às vezes por engano", diz.
Trajetória invertida sob Bolsonaro
Apesar de não ter punido agentes do Estado, o Brasil vinha construindo aos poucos um aparato de reconhecimento e reparação dos crimes da ditadura, diz Renan Quinalha, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e especialista em justiça de transição. Em 1995 foi criada a Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos, em 2002 teve início o pagamento de indenizações para anistiados políticos, e em 2012 a CNV foi instalada.
Essa trajetória foi invertida sob o governo Bolsonaro. O presidente afirmou que um notório torturador da ditadura, Carlos Alberto Brilhante Ustra, é um "herói nacional", questionou documentos do próprio Estado brasileiro que atestam a morte de pessoas pelo regime militar e determinou que o Ministério da Defesa comemorasse o aniversário do golpe.
– O Brasil é o único país do mundo que instalou uma Comissão Nacional da Verdade, justamente para criar uma cultura cívica e evitar retrocessos no futuro, e logo depois entrou numa espiral autoritária – diz Quinalha.
As declarações do presidente da República, contudo, não representam a maioria da população, diz Dallari. "Temos um governo de extrema direita negacionista em relação aos crimes da ditadura, mas ele não foi eleito por causa dessa agenda", afirma. "Os eleitores escolheram Bolsonaro por causa da crise dos partidos tradicionais, de escândalos de corrupção, do desemprego e da precariedade da segurança pública."
Pesquisas disponíveis indicam que a pauta radical de Bolsonaro não tem apoio da maioria dos brasileiros. Um levantamento do Datafolha realizado em 2 e 3 de abril de 2019 apontou que cerca de um terço da população tinha opinião parecida à do presidente quanto ao regime militar. Questionados se o dia 31 de março de 1964, início da ditadura militar, deveria ser comemorado ou desprezado, 36% responderam que a data deveria ser celebrada, enquanto 57% disseram que deveria ser desprezada.
Em fevereiro de 2014, outra pesquisa Datafolha mostrou que 46% da população eram favoráveis à revisão da Lei da Anistia, enquanto 37% eram contra.
O papel do Supremo
A decisão sobre uma possível revisão da Lei da Anistia cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pediu à Corte que a lei não beneficiasse mais agentes do Estado. O então procurador-geral de Justiça, Roberto Gurgel, e o governo, então sob o comando de Lula, foram contra a revisão da lei.
Em abril de 2010, o STF negou o pedido, afirmando que a norma havia sido fruto de amplo acordo político, era compatível com a Constituição de 1988 e valia tanto para agentes da ditadura como para militantes. A OAB protocolou um recurso, ainda não analisado, pedindo que os ministros se manifestassem também sobre a compatibilidade da lei com tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Após a decisão do Supremo, fatos novos trouxeram outros argumentos ao debate. Em novembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão responsável por interpretar e aplicar alguns tratados, condenou o estado brasileiro pelo desaparecimento de militantes na Guerrilha do Araguaia, durante a ditadura.
O órgão decidiu que a Lei da Anistia era incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos, e que o Estado brasileiro não poderia usá-la para deixar de investigar e punir os responsáveis. O Ministério Público Federal mudou sua posição sobre o tema e também passou a pedir a revisão da lei.
Com base na decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em maio de 2014 o PSOL apresentou uma nova ação ao Supremo, pedindo que os ministros reavaliassem a Lei da Anistia. O então procurador-geral de Justiça, Rodrigo Janot, se manifestou a favor da revisão da lei, e o processo ainda não foi julgado.
Em julho de 2018, a Corte Interamericana condenou novamente o Estado brasileiro, agora pela morte do jornalista Vladimir Herzog durante a ditadura, reconhecendo o caso como crime contra a humanidade.
Dimitri Dimoulis, professor da FGV Direito SP, afirma à DW que o Supremo terá que se manifestar novamente sobre o tema, mas, em sua opinião, a Constituição é superior aos tratados e deve prevalecer a decisão de manter a Lei da Anistia.
– No Brasil, a transição já foi feita, a maior parte das pessoas que tiveram responsabilidade nesse processo já morreram. Passado tanto tempo, não há mais justiça de transição, mas sim a ideia de rediscutir o passado – diz. Para ele, em vez de se fixar "em punir 20 ou 30 pessoas", o melhor seria o país refletir sobre o autoritarismo e a violência nos dias atuais e definir políticas públicas para superá-los.
Uma revisão da Lei da Anistia só volta à pauta do Supremo se o presidente da Corte tiver interesse. Quinalha, da Unifesp, vê com ceticismo a possibilidade de que isso ocorra na atual gestão Dias Toffoli, que se aproximou dos militares durante o governo Bolsonaro.
Dallari, por sua vez, afirma que as declarações do presidente da República a favor da ditadura chamam a atenção para a "conduta vergonhosa" do Brasil e aumentam a pressão para que o Supremo reabra o caso.