Todo o ser humano, homem, mulher, religioso ou não religioso tem obrigação de se envolver e participar da vida política de seu meio. Não envolvimento significa delegação do poder político para outrem, que passa a gerir e determinar as condições de vida de todos.
Voltando ao envolvimento lícito de religiosos com política, o que não pode haver é a interferência dos princípios religiosos no Estado. A Constituição brasileira, em seu artigo 5º VI, garante o livre exercício das crenças religiosas. Segundo o IBGE (2010) 92% dos brasileiros professa alguma crença; 8% são ateus. Natural que políticos professem suas crenças. Mas de acordo com a mesma Constituição, o Estado brasileiro é laico, ou seja, o Brasil não tem religião oficial. Isto deveria garantir que códigos de conduta moral religiosos não podem se sobrepor à população, e que nossas leis sejam feitas para todos, não para um grupo especial.
O Estado brasileiro formou-se com forte presença da igreja católica. Enquanto império, tinha o catolicismo como religião oficial. Em 1889 o Estado foi separado da igreja, mas somente em 1946 o direito à crença foi estendido a outras religiões. Liberdade religiosa com garantias de seu exercício, só em 1988. Os códigos de conduta de religiões do tronco abraâmico² são formados a partir dos dez mandamentos, antigo testamento. O Antigo Testamento é uma compilação de feitos, estórias e principalmente regras morais. Num período em que a mortalidade era alta e havia a necessidade de muitos braços para o trabalho e guerra, as normas morais incluíam a proibição de sexo que não visasse a procriação. Havia condenação das condutas sexuais diferentes da heterossexualidade ou não-monogâmicas. Mulheres deviam obediência irrestrita e pais tinham poder de vida e morte sobre filhos. Não se sabe a data exata da criação dos dez mandamentos, que, na prática, funcionavam como lei. Teriam sido escritas durante a suposta travessia do deserto e garantiam a convivência social pacífica de pessoas em condições adversas, teoricamente em diáspora ou em situação de escassez de água, alimentos e demais itens necessários. O toque de persuasão extra é garantido pela suposta origem divina, o que facilitava enormemente a tarefa dos dirigentes. As religiões pentecostais que seguem a teologia da prosperidade usam predominantemente o antigo testamento em seus cultos, ou seja, normas morais de dois mil anos. Defesa incondicional do patriarcado e da dita moralidade.
Outros costumes
Nosso código penal conserva alguns artigos derivados desta leitura. Outros costumes foram abandonados com a evolução da sociedade. Até pouco tempo atrás o adultério era crime. Hoje, depois de muita luta, o sexo fora do casamento e a homoafetividade são socialmente aceitos, mas não para o ministro evangélico presbiteriano e utraconservador. Aí está o problema. Se ele deseja seguir estes códigos em sua vida pessoal, tem todo o direito. Mas códigos de conduta moral de uma religião não podem ser impostos a pessoas que não pertencem a esta crença, muito menos transformados em lei. A comparação pode ser risível, mas é válida: Se um grupo de praticantes do hinduísmo estivessem no governo, o churrasco³ seria proibido.
O governo Bolsonaro levou muitos cristãos para o alto escalão da República. Eles estão em ministérios, no STF, em praticamente todas as instâncias da máquina pública, e muito mais por sua crença do que por sua qualificação. Para o STF ele preferia um ministro “terrivelmente evangélico”, mas na falta deste escolheu um “terrivelmente católico”, conservador da ala carismática.
Cerca de 38% da Câmara Federal se declara cristão evangélico ou católico, e são ligados à vertente mais fundamentalista destas religiões. Existem tentativas explícitas da imposição do código moral cristão, como o estatuto do nascituro, proibição do casamento homoafetivo e da proibição da adoção por casais homoafetivos. O Brasil de Bolsonaro não faz campanhas de prevenção à aids, à gravidez precoce, ao sexo seguro. A Advocacia Geral da União (AGU) chega ao ponto de querer definição de homofobia.
A possível eleição de Artur Lira e seus compromissos com esta parcela mais reacionária da Câmara dos Deputados traz estes e outros projetos de uma moral arcaica, que nem mesmo por estes conservadores é seguida (lembrem da deputada Flor de Lis). Existe quase uma centena de projetos de leis que vão da imposição de estudo da bíblico em escolas públicas à criação do dia nacional da família, passando por coisas bem mais sérias. O governo destina verbas para organizações religiosas simpatizantes do governo. E há bem pouco tempo atrás houve tentativa de incluir organizações de ensino religiosas no FUNDEB.
Os deuses democráticos
Então o problema deixa de ser os religiosos fazendo política e passa a ser religiosos conservadores intolerantes impondo suas ideias através de seus postos políticos. Os deuses democráticos devem estar muito brabos com esta turma. Ainda bem que não são vingativos e rancorosos como o deus que eles dizem cultuar. E cada dia é mais urgente discutir política e religião.
Nota:
Regina Abrahão, é educadora social, comunicadora, feminista, sindicalista e muito colorada.