Marçal, o bode na sala: e a eterna hipocrisia da imprensa

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Publicado segunda-feira, 30 de setembro de 2024 as 09:21, por: CdB

Personagens que pregam discurso de ódio, desrespeito aos direitos humanos e empreendedorismo, tudo junto e misturado, não brotam espontaneamente.

Por Eliara Santana – de Brasília

“A elite paulistana é a grande responsável pelo prolongamento da brincadeira de mau gosto chamada Pablo Marçal”. A fala acusatória e bem contundente é da colega Vera Magalhães em artigo publicado no diário conservador carioca O Globo. Sem poupar o poder de plantão, ela diz que o mercado financeiro “caiu de amores por um arruaceiro surgido do nada”.

O ex-coach e candidato à prefeitura de SP Pablo Marçal (PRTB)

Numa primeira leitura, ainda sob o impacto do discurso inflamado, a reação imediata é de concordar com a jornalista, sim, a elite paulista, um agrupamento preconceituoso e excludente, deu suporte importante à consolidação da candidatura Pablo Marçal, e pensar ingenuamente que a ficha pode estar caindo para os grupos de poder, imprensa incluída. Afinal, Vera até lembra a brutal desigualdade que marca São Paulo e o Brasil.

Mas, como já sei que de boas intenções o inferno está cheio, um olhar mais atento me provoca a destrinchar essa indignação trazida à cena pelo artigo e a buscar as razões pelas quais ela é tão conveniente e oportuna. E então percebo claramente: neste momento da política nacional, depois que socos, cadeiradas, murros e xingamentos tomaram o lugar daquilo que deveria ser um debate eleitoral, um debate público, Pablo Marçal se tornou o bode na sala. Aquele que precisa ser retirado para que as pessoas voltem a agir como agiam antes, aquele bode que pode colocar tudo a perder. Como lá atrás, no tristíssimo episódio da pandemia no Brasil, Jair Bolsonaro também se transformou nesse bode.

Tanto na pandemia como agora, a questão é: como os bodes entram na sala da democracia brasileira? Quem abre a porta?

O próprio artigo nos dá as pistas, apesar de querer camuflar os responsáveis. Um  primeiro ponto muito importante é a contaminação da política, à qual Vera se refere e reporta à ascensão de Marçal. Bem, é sempre conveniente lembrar que essa contaminação – ou degradação – já ocorreu lá atrás, quando a imprensa aceitou, sem questionar, a falácia das “pedaladas fiscais” para justificar que uma presidenta legitimamente reeleita fosse arrancada do poder sem crime de responsabilidade, com um forte protagonismo nessa encenação. Ou quando essa mesma imprensa fechou os olhos à destruição de uma gigante estatal, a Petrobras, para tentar enterrar um partido político, ou ainda quando deram aval a um juiz de primeira instância para criminalizar a política no Brasil.

Marçal não é fruto das redes sociais

Outro aspecto importante e que precisa ser sempre lembrado é que nenhum forasteiro cai totalmente de paraquedas no mundo político. Não é mera obra do acaso. Pablo Marçal não é fruto das redes sociais, somente. Essa é uma perspectiva conveniente e simplista. Não é bem assim que as coisas funcionam. Marçal é fruto do golpe contra Dilma, é fruto do pato amarelo na Avenida Paulista, é fruto da empáfia irresponsável de Aécio Neves ao dizer que perdia a eleição de 2014 para uma Orcrim, é fruto da passada de pano para o militar de baixa patente Jair Bolsonaro.

Portanto, quem sempre abre a porta para o bode entrar e dá as condições para ele se instalar é a imprensa, em sua conivência com o status quo e o antipetismo. Foi assim com Sérgio Moro e a Lava Jato; foi assim com o golpe contra Dilma Rousseff; foi assim com Jair Bolsonaro.

Em 2018, a imprensa naturalizou falas e ações preconceituosas do então candidato à Presidência. Em 2024, naturalizou a participação em debates de um candidato virulento, provocador barato, desestabilizador.

A imprensa blindou personagens nefastos do então Governo Bolsonaro a partir de 2019, como Paulo Guedes e Hamilton Mourão, sem nunca questionar o que estavam fazendo.

A imprensa engoliu e reproduziu todos os desmandos e as ações esdrúxulas de Sergio Moro e Deltan Dallagnol na condução da Lava Jato, fechando os olhos completamente para toda a perseguição política que os dois e seus asseclas ensejaram.

Depois de passar muito pano para esse conjunto de ações predatórias à democracia, de tempos em tempos a imprensa veste a camuflagem e ativa o modo “indignada”. É fácil, muito fácil sair de cena e apontar o dedo depois de fazer o malfeito. É conveniente e não dói, e o baile segue.

Nesses momentos de arroubo democrático e cidadão, sempre me recordo do sensacional Tomasi di Lampedusa, em O Leopardo, quando o velho Don Fabrizio diz, sobre a ascensão da burguesia: “É preciso que tudo mude, para que tudo continue como está”.

Assim, inspirada mais por Lampedusa do que por Vera, sigo na compreensão de que o bode da vez, Pablo Marçal, não chegou à sala por acaso, caindo de paraquedas e surpreendendo todos os inocentes que foram “enganados”. Personagens que pregam discurso de ódio, desrespeito aos direitos humanos e empreendedorismo, tudo junto e misturado, não brotam espontaneamente – eles dão sinais e encontram suporte no cinismo do poder dominante. E da imprensa.

 

Eliara Santana, é Jornalista, doutora em Estudos Linguísticos e pesquisadora do Observatório das Eleições.

As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil

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