Sequestros, violência sexual e casamentos forçados são cada vez mais frequentes em Cabo Delgado, no norte do país. Crianças são as grandes vítimas da luta entre islamistas e tropas nacionais, que já entra no oitavo ano.
Por Redação, com DW – de Cabo Delgado
“Aqui nesta região muitas garotas foram raptadas e obrigadas a se casar com terroristas”, conta Telma, natural do distrito de Chiúre, província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique. Lá trava-se desde outubro de 2017 uma guerra violenta entre um grupo terrorista associado ao “Estado Islâmico” (EI) e as forças de segurança nacionais e seus aliados.
A jovem de 17 anos prossegue: “Na nossa vizinhança mora uma moça que conseguiu escapar dos terroristas, depois de três anos de cativeiro, e voltar para a família. A maioria não volta nunca mais. Os jihadistas também sequestram meninas pequenas, elas crescem lá com eles até a maturidade sexual. Aí são forçadas ao sexo e a ter filhos.”
Esse é apenas um entre centenas de testemunhos recolhidos no norte moçambicano e analisados por diversas organizações humanitárias. O resultado dessa pesquisa de campo foi compilado num relatório sobre casamentos infantis forçados em Cabo Delgado, recém-publicado pela ONG Save The Children Moçambique.
– O problema do casamento forçado de menores de idade já existia antes da guerra, mas por muito tempo era tabu, por motivos de cunho cultural e social – explica Paula Sengo Timane, uma das autoras do estudo. “Desde o começo do terror, porém, o problema se agravou drasticamente. Precisamos fazer algo contra.”
O relatório registra um aumento de 10% dos casamentos infantis desde a escalada do conflito em Cabo Delgado, e ela teme que o número vá continuar crescendo. A guerra que grassa em grande parte da província impede que as crianças das áreas mais disputadas recebam a proteção e apoio necessários.
Casamentos forçados como proteção contra rapto e estupro
A especialista em proteção infantil apela por um fim imediato do conflito e por recursos adicionais, voltados aos cuidados e assistência dos menores. Em distritos assolados pelos extremistas islâmicos, como Macomia, Palma ou Mocímboa da Praia, “não é impossível” ONGs como a Save the Children manterem sua atividade, mas “é muito difícil e um desafio”.
Enquanto a situação de segurança permanece precária, muitas vezes as organizações não têm acesso às áreas contestadas nem, portanto, aos indivíduos vulneráveis, ficando impraticável ajudá-los.
– No decorrer do nosso trabalho de campo, nós constatamos que os jihadistas empregam sistematicamente sequestros, estupros e casamentos forçados como instrumentos de guerra – relata Timane. Sua meta é disseminar “medo e terror” entre a população.
– Desse modo eles querem demonstrar seu poder sobre as famílias e também ganhar terreno psicologicamente. Esse é um componente importante das práticas de combate desses grupos, também em outras regiões do mundo.
Há ainda um outro componente resultante da atual conjuntura social e sociocultural no local de guerra: “A situação econômica e social é catastrófica. Nesse contexto, estão também documentados casos isolados de pais que, em obediência antecipada, praticamente ofereceram as filhas menores para se casarem com os terroristas”, revela a autora do relatório, com base em relatos locais.
“Geralmente as famílias visam o dote, do qual, em sua miséria, dependem para alimentar o resto da família. Sobretudo porque nos últimos anos a guerra reduziu a maior parte das rendas na região de conflito.” Ao mesmo tempo, porém, há um aspecto de segurança, pois “alguns pais preferem entregar as filhas a um homem que as proteja de eventuais estupros e raptos por outros terroristas”.
Danos devastadores à educação e psique infantil
A onda de conflitos em Cabo Delgado desde janeiro de 2024 provocou o fechamento de quase todas as escolas das zonas de conflito, impossibilitando a mais de 22,7 mil crianças o acesso à educação.
Paula Sengo Timane frisa que para as jovens casadas a chance de concluir o ensino é bem mais reduzida. Além disso, elas estão mais expostas a violência física e sexual, paralelamente aos riscos de complicações durante a gestação e o parto.
O relatório da Save the Children registra ainda, entre as crianças da região, um medo crescente de ser vítima desse tipo de violência: “Nós documentamos que as crianças das regiões mais disputadas, e em especial as meninas, estão em parte gravemente traumatizadas e necessitam acompanhamento psicológico.”
A luta contra o terror jihadista em Cabo Delgado já entra em seu oitavo ano, sem fim à vista. Em fins e junho, a Organização das Nações Unidas relatava que, desde o os últimos meses de 2023, mais de 189 mil cidadãos foram obrigados a abandonar suas casas, no maior processo de expulsão desde o início do conflito. Desde 2017, registram as ONGs, já houve mais de 4 mil mortes, e mais de 700 mil residentes estão desalojados.