Rio de Janeiro, 21 de Dezembro de 2024

Especialista em Defesa aponta desgaste na imagem das Forças Armadas

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Segunda, 22 de Fevereiro de 2021 às 10:29, por: CdB

"Inicialmente, havia uma expectativa de que as Forças Armadas seriam o lado racional do governo. Como Bolsonaro já tinha a fama de ser uma pessoa extremada, esperava-se que a racionalidade e a tutela militares poderiam ‘civilizá-lo’, de alguma forma", afirma o doutor em Ciências Sociais João Roberto Martins Filho. 

Por Redação, com BdF - de São Paulo

A compra de 714 mil quilos de picanha e 80 mil unidades de cervejas por membros do Exército e da Marinha em 2020, com indícios de superfaturamento, é apenas um capítulo da deslegitimação da Forças Armadas no Brasil. A avaliação é de João Roberto Martins Filho, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor aposentado do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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Forças Armadas perdem prestígio junto à sociedade brasileira, após denúncias vinculadas ao governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido)

Martins Filho, que criou em 1996 o Arquivo de Política Militar Ana Lagôa e foi o primeiro presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (2005-2008), concedeu entrevista ao site de notícias Brasil de Fato (BdF) para comentar o que está por trás de mais essa denúncia.

— Inicialmente, havia uma expectativa de que as Forças Armadas seriam o lado racional do governo. Como Bolsonaro já tinha a fama de ser uma pessoa extremada, esperava-se que a racionalidade e a tutela militares poderiam ‘civilizá-lo’, de alguma forma — lembra o especialista.

Narrativa

Passados dois anos de governo, Martins Filho avalia que essa expectativa não se realizou.

— As Forças Armadas estão pagando por terem se associado a um cara como Bolsonaro — analisa.

Para além da postura do capitão reformado, o pesquisador das Forças Armadas chama atenção para a narrativa infundada de que os militares seriam moralmente superiores ao restante da população.

— O que choca sempre é que temos Forças Armadas altamente presunçosas, na ideia de que eles são melhores que os civis. Por outro lado, conforme vai se jogando luz ao que acontece lá dentro, vemos que os problemas são muito semelhantes aos que ocorrem na burocracia civil, como é o caso das compras superfaturadas — afirma.

Powerpoint

João Roberto Martins Filho é o organizador da coletânea de textos Os militares e a crise brasileira (Alameda Editorial, 2020), com pré-venda liberada a partir desta segunda-feira.

Os militares não apenas compraram picanha e cerveja com preços muito acima do que acostumados a ver nos supermercados, como também incluíram esses pedidos em processos licitatórios ao longo de 2020. Essa afronta pode ser lida como um sintoma de que eles se sentem intocáveis por sua presença no governo Bolsonaro?

— Seria muito útil se houvesse uma sequência histórica desses pedidos, para compararmos com anos anteriores e ver se aumentou no governo Bolsonaro.

A doutrina do general Villas Bôas (comandante do Exército de 2015 a 2019) diz que a atuação do Exército se baseia em legitimidade, estabilidade e legalidade. Em 2018, em uma reunião do alto comando do Exército, o general Rêgo Barros, que era o chefe do centro de comunicação social, apresentou um Powerpoint mostrando como o trabalho deles durante anos tinha melhorado a imagem do Exército.

Custo alto

Então, no caso da notícia citada, o que me chama atenção não é tanto a especificidade do que foi comprado – porque é difícil estimar a quantidade de carne necessária para alimentar 200 mil pessoas do Exército –, mas a recepção favorável da imprensa a qualquer matéria que aponte abusos das Forças Armadas. A imprensa está com olhar muito crítico sobre as Forças Armadas, e a perda de legitimidade tem sido muito grande.

Esse processo gera um contraste com aquela imagem arrogante do Exército, que se considera moralmente superior e separado do restante da sociedade, sem admitir nenhum tipo de interferência. Quase todos os dias têm uma notícia negativa sobre as Forças Armadas. E o que me espanta é que elas não percebem que sua participação e apoio ao governo Bolsonaro tem um custo muito alto.

— Por que a mídia hegemônica estaria disposta, mais do que em outras épocas, a publicar matérias que afetam a legitimidade das Forças Armadas?

— Tem um claro elemento político. Inicialmente, havia uma expectativa de que as Forças Armadas seriam o lado racional do governo. Como Bolsonaro já tinha a fama de ser uma pessoa extremada, esperava-se que a racionalidade e a tutela militares poderiam “civilizá-lo”, de alguma forma.

Desmantelado

Essa expectativa ficou clara nos artigos dos principais colunistas do país ao início do governo. Mas isso foi, pouco a pouco, se desgastando.

A imprensa sempre foi muito amiga das Forças Armadas. Mas, já que entre os sócios de Bolsonaro estão os militares, a imprensa passou a atacá-los como forma de atacar Bolsonaro – e os militares deram inúmeras razões para isso.

Eles demoraram muito a agir, por exemplo, no caso dos incêndios da Amazônia. E quando agiram, foi no sentido de enfraquecer órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes (ICMBio).

O pior de tudo foi quando eles ocuparam e desmantelaram o Ministério da Saúde, que tinha grande capacitação técnica. A sociedade, obviamente, está indignada com o fato de não termos vacinas suficientes. E quem é o ministro? Um general. Quem é o secretário do ministro? Um coronel.

Santos Cruz

A população recebeu a notícia dos “80 tiros” no Rio de Janeiro, do integrante da Aeronáutica flagrado com cocaína em um avião da comitiva presidencial. Então, a questão do “churrasco” é só mais uma nesse processo de deslegitimação.

As Forças Armadas estão pagando por terem se associado a um cara como Bolsonaro.

— Os militares se acomodaram aos cargos e benesses concedidos pelo governo federal, ou há algum tipo de reação no interior das Forças Armadas?

— Houve uma sequência de acontecimentos. Primeiro, a demissão do general Santos Cruz (da Secretaria de Governo) – que, embora tenha sido um dos principais artífices da vitória de Bolsonaro, brigou com os filhos dele. Isso polarizou os generais.

Depois disso, tivemos o processo de desmoralização mais profundo. O general Heleno foi flagrado xingando o Congresso, em uma demonstração de absoluta rudeza, falta de educação. Tem ainda a gravação da reunião ministerial de 22 de abril, em que Bolsonaro se revela um governante completamente descontrolado: os generais, ali do lado, não manifestam a menor discordância.

Está consolidada a ideia de que, se alguém discordar do Bolsonaro, ele põe para fora do governo, mesmo que seja um general.

Oito anos

— Se os militares não estão dispostos a um golpe, quais as perspectivas: eles devem se submeter gradativamente ao controle civil, qualquer que seja o governo eleito em 2022, ou devem trabalhar, em parceria com Bolsonaro, para tornar a gestão menos transparente e dificultar o acesso a dados públicos?

— No momento, o que está se encaminhando nas Forças Armadas é um apoio unânime à eleição de Bolsonaro, o que garantiria oito anos no poder.

Eu, infelizmente, não vejo dentro das Forças Armadas um pensamento democrático. Seja na Força Aérea, na Marinha, não consigo enxergar isso.

O governo tenta o tempo todo destruir as instituições democráticas, e não vemos nenhum militar sair do governo — conclui o especialista.

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