A busca mitológica do Estado mínimo levou os governos de todos os cantos do globo a praticarem o liberalismo em seu estado mais puro e natural, promovendo a venda das empresas estatais ao capital privado e dando tratos à bola para conceber de maneira criativa as mais variadas formas de privatização da atividade econômica.
Por Paulo Kliass – de Brasília
Durante o apogeu da hegemonia do paradigma neoliberal em todo o mundo, determinados conceitos da macroeconomia e boa parte das orientações de política econômica até então praticadas passaram a ser consideradas como pura heresia. Desde que os preceitos do chamado Consenso de Washington foram transformados em definições de estratégias de governo, o fato é que a ideia de retirada do Estado de qualquer espaço da ideia de economia virou regra.
A conversão ao novo credo da ortodoxia monetarista envolveu professores e pesquisadores nas principais universidades, formuladores e funcionários das organizações multilaterais (a exemplo do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e similares) e formadores de opinião nos grandes meios de comunicação por todos os continentes. A nova profissão de fé atingiu também a tecnocracia governamental de maior parte dos países, de modo que a política econômica por eles praticada estivesse em consonância com as convenções da nova fé.
A busca mitológica do Estado mínimo levou os governos de todos os cantos do globo a praticarem o liberalismo em seu estado mais puro e natural, promovendo a venda das empresas estatais ao capital privado e dando tratos à bola para conceber de maneira criativa as mais variadas formas de privatização da atividade econômica.
Tudo aquilo que cheirasse a setor público ou se aproximasse de algum tipo de arranjo governamental na esfera da economia deveria ser evitado. Expressões como planejamento de governo, política salarial, subsídios, incentivos tributários ou creditícios, política cambial e inúmeras outras passariam a compor algo semelhante a um index terminus proihibitorum, em uma alusão ao conjunto de livros que a Igreja havia proibido nos tempos da Inquisição. Toda e qualquer tentativa de pensar fora da caixinha do diktat do financismo neoliberal era imediatamente classificada como heresia e deveria ser descartada do cardápio de possíveis alternativas a serem aplicadas.
Neoliberalismo e a proibição da política industrial
Dentre as expressões que foram banidas do discurso e da prática dos governos esteve por longo tempo a importante formulação “política industrial”. Para os neoliberais autênticos ou convertidos ao longo do processo inquisitório, essas duas palavrinhas juntas representavam um perigo. Mesmo separadas elas poderiam representar algum tipo de ameaça de retrocesso aos tempos em que a dinâmica da economia era inseparável da “política”. Aos olhos do liberalismo extremado, essa vinculação era perversa e deveria ser evitada a todo custo, uma vez que a economia era uma ciência exata e onde todos os processos deveriam ser passíveis de cálculo e previsão.
No que se refere ao segundo termo da expressão, o incômodo dos divulgadores da nova religião também era evidente. Afinal, o mais adequado seria que os países se acomodassem com a realidade da nova ordem mundial em construção. Assim, segundo o desenho do neocolonialismo em ação, a forma mais eficiente da divisão internacional do trabalho, da produção e das trocas pressupunha a incorporação de realidade inescapável onde as tarefas de exportação de bens primários e agrícolas caberia aos chamados países em desenvolvimento. Assim, nada de sonhar com tempos passados da busca do desenvolvimento da “indústria”, o único setor capaz de produzir bens de elevado valor agregado.
A combinação dos dois termos foi uma das bases para as estratégias de desenvolvimento, opções típicas do período que se seguiu ao pós Segunda Guerra. Os países organizavam planos de desenvolvimento econômico e social. Os governos aperfeiçoavam seus instrumentos de planejamento de médio e longo prazos. A consolidação de cadeias de produção econômica e de infraestrutura compunha a existência e o surgimento de importantes empresas estatais em diversos setores da economia. Assim, é compreensível que a “política industrial” tenha sido fundamental para os anos de crescimento que foram observados na maior parte dos países do globo, incluindo o Brasil.
O sonho do financismo: Estado mínimo
No entanto, a entrada na década de 1980 pôs uma pá de cal nesse modelo. Política industrial passou a ser uma expressão herética, em especial pelo fato de que ela exigia a presença ativa de financiamento e de linhas de crédito oferecidas pelos grandes bancos públicos. Esse tipo de aporte, por suas próprias características de setores estratégicos e inovadores, implicava a presença de subsídios públicos nos modelos de empréstimo e capitalização. Além disso, os arranjos adotados envolviam a preferência por grupos nacionais, de forma a internalizar os efeitos positivos da multiplicação do crescimento das atividades de forma geral. Enfim, tratava-se de um caldo que não rezava apenas pela obediência burra e cega às “livres forças de mercado”. Assim, tais afrontas aos dogmas da nova profissão de fé deveriam ser abolidas rapidamente.
O Brasil cumpriu à risca as novas recomendações e imposições do financismo internacional em vários aspectos. Privatizamos um conjunto importante de setores e grupos de empresas estatais desde 1990. Incorporamos as regras da austeridade fiscal em nossos marcos legais, em especial a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) em 2000. Fernando Henrique Cardoso falou em enterrar a herança de Getúlio Vargas no governo em geral e no BNDES em particular. Ocorre que a partir da crise econômico-financeira de 2008/9 e depois da crise mais recente da COVID, os paradigmas extremos do neoliberalismo do próprio centro do capitalismo foram flexibilizados. A presença do Estado na economia deixou de ser encarada como um problema tão grave como anteriormente. A austeridade passou a ser relativizada e a política industrial voltou ao centro da agenda.
Este é o panorama geral no qual deve ser compreendido o surgimento das diretrizes de neoindustrialização que o terceiro mandato de Lula tem apresentado ao País. Os primeiros passos foram dados logo no início de janeiro, com a recriação do Ministério da Indústria e Comércio (MDIC) e a consequente nomeação do Vice Presidente Geraldo Alckmin para o cargo. Com isso, foi restabelecido o Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI), contando com a participação de quase todos as demais pastas e entidades do mundo empresarial, dos trabalhadores e de pesquisa. Em julho de 2023 foi anunciado um plano de neoindustrialização, com a previsão de aporte de recursos da ordem de R$ 106 bilhões. No entanto, a maior parte das ações ainda não haviam sido encaminhadas até o final do primeiro ano do mandato.
Lula 3.0 e a neoindustrialização
O segundo ato desse importante movimento foi dado no início desta semana. O governo realizou um evento de peso, com a presença de quase todos integrantes de primeiro escalão para anunciar o “Nova Indústria Brasil”, um Plano de Ação para a Neoindustrialização. Trata-se de um conjunto muito bem elaborado de diretrizes e linhas de ação voltados para recuperar o atraso que a nosso País enfrenta há muito tempo no setor. O processo dramático de desindustrialização precisa urgentemente ser revertido, para que se criem condições de se retomar os rumos de um modelo de desenvolvimento de médio e longo prazos. A nota destoante do evento, liderado pelo Presidente Lula, foi a ausência significativa de seu Ministro da Fazenda. O fato de Fernando Haddad não ter participado do lançamento lançou dúvidas e especulações a respeito dos motivos para tanto.
O Plano foi concebido com uma metodologia bastante avançada e se implanta sobre as bases de “missões”. Esse procedimento permite a articulação de um conjunto de atores e mecanismos em torno de temas considerados prioritários para o processo de reindustrialização. São elas:
Missão 1 – Cadeias agroindustriais sustentáveis e digitais para a segurança alimentar, nutricional e energética.
Missão 2 – Complexo econômico industrial da saúde resiliente para reduzir as vulnerabilidades do SUS e ampliar o acesso à saúde;
Missão 3 – Infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade sustentáveis para a integração produtiva e o bem-estar nas cidades;
Missão 4 – Transformação digital da indústria para ampliar a produtividade;
Missão 5 – Bioeconomia, descarbonização e transição e segurança energéticas para garantir os recursos para as gerações futuras.
Missão 6 – Tecnologias de interesse para a soberania e defesa nacionais
Além disso, o plano incorpora princípios que deverão nortear o conjunto de ações, programas e projetos do “Nova Indústria Brasil”. São eles:
I – inclusão socioeconômica;
II- equidade, em particular de gênero, cor e etnia;
III- promoção do trabalho decente e melhoria da renda;
IV- desenvolvimento produtivo e tecnológico e inovação;
V- incremento da produtividade e da competitividade;
O anúncio oficial menciona o total de R$ 300 bi em recursos para colocar o plano em movimento. No entanto, ali estão contabilizados os R$ 106 bi já destinados em julho e que ainda não foram dispendidos. Assim, trata-se de R$ 194 bi de recursos “novos” a serem gastos até 2026. A maior parte deste total deverá ser desembolsado pelo BNDES (80%) sob a forma de financiamentos e empréstimos, enquanto o restante será de responsabilidade de outros dois órgãos federias, a saber – FINEP e EMBRAPII.
Sucesso da “Nova Indústria Brasil”: fim da austeridade fiscal
A maior dúvida que permanece dentre os analistas refere-se à capacidade de o governo federal conseguir realizar tais despesas de investimento. Afinal, o Novo Arcabouço Fiscal é um instrumento limitador dos gastos públicos, inibindo o crescimento das rubricas de dispêndios e de investimentos públicos. Além disso, o estabelecimento adicional da “meta zero” para o resultado fiscal primário de 2024 também deverá contribuir para dificultar ou mesmo impedir que os desembolsos previstos no “Nova Indústria Brasil” possam ser efetivados.
Mais uma vez, a possibilidade de este importante projeto sair do papel está nas mãos do Presidente Lula. Caso a meta fiscal seja mantida e as orientações conservadoras do Ministro Haddad em prol da austeridade não sejam corrigidas, muito dificilmente o ambicioso e necessário projeto de neoindustrialização sairá do papel. Não basta apenas apelar para o sentido de responsabilidade dos grupos empresariais. Enquanto não for recuperado o protagonismo do Estado no processo econômico, o capital permanecerá acomodado em seu canto, satisfeito com os ganhos proporcionados pelo parasitismo financista. E para isso, as amarras da austeridade fiscal devem ser superadas e deixadas de lado.
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
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