Rio de Janeiro, 14 de Fevereiro de 2025

‘Crime’ dos imigrantes é fugir do inferno provocado pelos EUA em seus países

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Terça, 28 de Janeiro de 2025 às 09:44, por: CdB

Com as deportações, perdem os norte-americanos: privam-se da nossa cultura, das nossas trocas generosas e do nosso humanismo.

Por Milton Rondó – de Brasília

“Ai dos que juntam casa a casa, dos que acrescentam campo a campo até que não haja mais espaço disponível, até serem eles os únicos moradores da terra” – Profeta Isaías

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Imigrantes da Guatemala deportados pelos EUA na base da Força Aérea na Cidade da Guatemala em 24 de janeiro de 2025

Donald Trump está claramente entre aqueles. Os latifundiários brasileiros, também, assim como a oligarquia nacional e seus dois braços, o armado e o midiático.

Não nos rendamos, porém.

Resistência é o que desde sempre exercemos todos os povos do Sul, da América Latina e do Caribe, em particular, sempre.

Não poderia ser diferente. Nunca foi fácil e nunca será.

Imigrantes irregulares

Com as deportações de imigrantes irregulares, empreendidas por Trump, perdem os Estados Unidos da América: privam-se da nossa cultura, das nossas trocas generosas e do nosso humanismo.

Como simples cidadãos e cidadãs podemos apenas responder de forma humilde, mas eficaz, nos moldes do que fizera Mahatma Ghandi: evitando consumir todo e qualquer produto dos EUA, carros, filmes, jeans e até aviões (demos preferência às companhias que não os utilizem, até porque são aeronaves ruins e inseguras).

Em Doutrina Social da Igreja, outro mundo possível (editora Paulus), de Altierez dos Santos e Luiz Alexandre Solano Rossi, lemos: “A comunidade política não se restringe a apenas uma nação, mas tem sua continuidade natural na relação entre as nações, apoiando-se nos mesmos valores que orientam a convivência entre as pessoas: a verdade, a justiça, a solidariedade e a liberdade. Nessas relações, o direito é um instrumento de garantia de sua ordem”.

Deportar imigrantes irregulares, algemados e acorrentados, está totalmente contra o direito internacional e o respeito aos direitos humanos.

Convém notar que são imigrantes irregulares, mas que não cometeram qualquer tipo de crime, a não ser tentar fugir do inferno gerado em seus países pelos próprios EUA e seus comparsas locais, as oligarquias.

Na obra antes mencionada, os autores citam a encíclica Laudato Sí, na qual o papa Francisco enfatiza: “É preciso sair do individualismo e do antropocentrismo que colocam o ser humano no centro de tudo, e caminhar para o encontro da relação de integridade que ressignifica a existência humana a partir de um ‘ser com o outro”.

Observam, com propriedade: “Portanto, cultivar a criação pressupõe, primeiramente, um resgate do cultivo das relações humanas, familiares e sociais. O ser humano precisa resgatar em si essa dimensão, ou seja, sair do egoísmo antropocêntrico que leva ao individualismo e ao isolamento social e abrir-se à presença, ao protagonismo e à dignidade do outro”.

Como seria bom se Trump pudesse entender essas palavras!

Seres humanos

Assim como deveria conhecer a obra de Paulo Freire, que não cansou de nos recordar que todos dependemos uns dos outros, pois somos seres moldados para dialogar, trocar, ensinar e aprender uns com os outros, tanto seres humanos, quanto países e nações.

Sim, estamos falando de cosmovisões diversas, que englobam até mesmo o divino.

Nesse sentido, aqueles autores diagnosticaram:

“O próprio Deus passa a ser representado a partir da lógica daquele que detém o domínio socioeconômico e político. A partir dessa leitura fundamental, todas as outras leituras passam a ser consideradas inoportunas e heréticas. Nessa representação, Deus sempre é estereotipado como representante do rico, do dominador e do vitorioso. Agora, tanto o céu quanto a terra passam para o controle dos ricos e dominadores. Suas portas são severamente vigiadas e não é possível a entrada de qualquer um. A vítima deixa de ter direitos tanto no céu como na terra. E a diminuição de seus direitos na terra é o mais justo reflexo da realidade celestial. Consequentemente, Deus não está mais ao lado dos pobres e excluídos. Ao contrário, está contra eles!…Estamos, portanto, diante de uma sociedade de mercado que produz uma religião de mercado. Uma sociedade e uma religião excludentes de ampla maioria de pessoas que se veem derrotadas e excluídas na sociedade de consumo…As leis do mercado são vistas como leis que devem ser seguidas a qualquer custo, por isso podem ser vistas como leis religiosas, leis de Deus. Assim, qualquer realização da vida passa necessariamente pelo mercado. A vida passa a ser legitimada como verdadeira a partir do mercado. Fora do mercado, não há possibilidade de vida e, portanto, de salvação. Por isso, quem não se ajusta é naturalmente excluído”.

Confundir o humano com o divino é erro sério, que levou Ícaro à ruína, com suas asas de cera derretendo-se, na tentativa dele de alcançar o próprio sol.

Só uma defesa conjunta, com base em nossas cosmovisões comuns, será capaz de contrapor os desígnios de um sacerdote de Manon, o deus do dinheiro e dos plutocratas.

Dessa maneira, bem-vinda a iniciativa do presidente da Colômbia, Gustavo Petro, de convocar reunião da Comunidade de Países da América Latina e Caribe para apreciar conjuntamente como reagir às deportações em massa determinadas por Trump.

Em Um Rio, Um Pássaro (editora Dantes), Ailton Krenak reflete: “Todavia, quando trabalhava arduamente, percebi as minhas limitações e o quanto sou pequeno para trabalhar sozinho. Foi então que sonhei. Passei a receber ensinamento dos sonhos, como é o costume da nossa tradição.”

Sonhemos, pois, de olhos fechados e também abertos, mas sempre juntos: uma América Latina e Caribe, como teriam desejado Marcus Garvey, Aimé Césaire e Franz Fanon; é das pequenas Jamaica e Martinica que virá a força da luta não-violenta, contra os violentos que nada aprenderam nem sequer dos arquétipos cristãos de David e Golias, que dizem professar, mas sem entendê-los. Façamos como a bispa anglicana de Washington, que disse a Trump que misericórdia não exercida com imigrantes e gays não é divina, apenas simulacro de fé e religião.

 

Milton Rondó, é diplomata aposentado.

As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil

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