Tudo acontece muito depressa no Brasil tanto que meu comentário sobre a saída do ministro da Saúde não chegou a ser publicado, pois logo ocorreu a demissão do ministro da Justiça. Para corrigir a ausência, segue a nossa primeira impressão, hoje agravada, dos estragos causados pela queda do ministro Mandetta.
Rui Martins, editor do Direto da Redação:
Depois da demissão do ministro Sérgio Moro, a situação se agravou e merecerá um novo comentário, mesmo porque o próprio STF quer melhores informações sobre as denúnicas do ex-min istro da Justiça. Tudo se acelera.
Meu texto já estava fechado, era só enviar ao editor. O título seria mais ou menos este: “Vírus derrubará Bolsonaro até o fim do ano”.
Por que? Porque com a mudança de ministro da Saúde, o risco de se acabar com a quarentena poderia provocar uma contaminação generalizada da população.
A situação dramática desmentiria o gado bolsonarista ainda repetindo não haver pandemia, o luto faria muitos cegos evangélicos perceberem não haver cura divina para o coronavírus e, enfim, a ignorância seria vencida pela realidade. Bolsonaro cairia como uma fruta podre.
Essa previsão ainda é válida, mas a situação política brasileira mudou no domingo à tarde. O vírus como causador da queda do presidente já não é o fator principal. Essa destituição – agora considerada certa, não só por mim e alguns, mas por todos – terá feições de auto-impeachment.
Foi o próprio presidente quem acionou o botão automático que o lançará do Alvorada ao anonimato de sua residência, no Rio, onde poderá passar seu tempo jogando truco, porrinha com seus amigos milicianos ou pastores evangélicos. Duvido que possa comer gente, como dizia fazer em Brasília, onde era deputado inoperante.
Saindo dessa época maçante e religiosa, na qual só se falam em versículos mal lidos e mal entendidos da Bíblia – pois, não esqueçamos, somos um povo de fanáticos analfabetos -, algo de novo surgiu como figura de retórica.
O presidente nacional da OAB, Felipe Santa Cruz, numa frase que espero se torne simbólica e que se repita nesses próximos dias e meses, referiu-se ao passado histórico de nossa civilização ocidental ao citar a proibição existente nas leis ou no direito do Império Romano de se atravessar ou se ultrapassar o Rubicão.
Nenhum general ou comandante militar podia atravessar o Rubicão com suas tropas. Esse era o nome do rio que separava a Gália Cisalpina do território romano com a capital, Roma, onde vivia o soberano com a máquina administrativa do império. Atravessar esse rio com as tropas poderia significar a intenção de derrubar o imperador romano.
Esse saboroso trecho da história que me transporta às aulas de Direito Romano, no Largo de São Francisco, permite também comparar o grande Júlio César com o minúsculo Bolsonaro. Destituído do comando das tropas pelo Senado, Júlio César decidiu atravessar o Rubicão, entrar em Roma e assumir o poder.
Ao se unir com suas tropas ou gado, em Brasília, diante do Quartel-General das Forças Armadas, Bolsonaro não pronunciou a conhecida frase latina Alea jacta est, mesmo porque nem deve conhecê-la. Essa frase, dita por Júlio César enquanto seus soldados se molhavam na travessia do Rubicão, quer dizer “a sorte está lançada”. Júlio César assumiu o poder, tornou-se ditador e foi assassinado cinco anos depois.
A beleza do uso da imagem do Rubicão só vale por significar ultrapassar os limites do permitido. Bolsonaro, mais conhecido como Bozo, o palhaço, ultrapassou os limites da legalidade ao se unir a um grupo de fanáticos golpistas e evangélicos e defender com eles o fim da nossa democracia e a reinstauração da ditadura militar.
Só que Bolsonaro não é Júlio César, nem general vitorioso, mas um mero capitão, ao que tudo indica com dificuldade de discernimento. Ao atravessar o Rubicão, nosso Bozo metido a Júlio César levantou contra si a parcela esclarecida da população e da sociedade organizada, além de unir todas as forças políticas democráticas, inclusive algumas que ainda ontem o apoiavam, mas perceberam a tempo a louca ambição do capitão de se tornar ditador.
Enfim, o vírus vai ajudar na queda do capitão metido a déspota, incapaz sequer de reunir em torno de si gente capacitada, valendo-se do rebotalho e de figuras sem expressão política ou intelectual. Mas o vírus não é mais o fator principal. E sim o Rubicão, a petulância de um candidato a ditador que, nos seus meses de governo, vem destruindo tudo e ameaçando nossa democracia.
Meus óculos não me permitem ver o futuro, mas dizer que Bozo não emplacará 2021 é, hoje, o óbvio. Não é uma profecia. A dúvida é sobre como será o dia depois do impeachment. O delírio, a ignorância, a manipulação das pessoas, essa mistura de messianismo político podem nos levar a dias sombrios. Bozo não é o grande general romano e nem Antônio Conselheiro, mas seus seguidores fanáticos – mais os pastores, que perderão um futuro de vantagens – poderão atiçar a parcela do povo que manipulam, cerca de 30%, a reagir e a trocar a Bíblia pelas armas.
Espero que o impeachment se processe normalmente, mas Bolsonaro poderá levar o Brasil a tragédia talvez maior que o coronavírus. Alea jacta est, como diria Júlio César.
***Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.