No entanto, esse homem possui uma justa fama de criador, de artista gráfico maior do Brasil. Entendam, Lombroso e o cinema de Hollywood jamais compreenderão qualquer alma humana.
Por Urariano Mota – de São Paulo
Pernambuco, o Recife, os amigos, os admiradores de todo o Brasil perderam no domingo 28 de maio de 2023 o criador Ral. Passei toda a semana calado, fazia de conta que nada, afinal ele estava sofrendo da Esclerose Lateral Amiotrófica, nome feio do mal e doença pior ainda. “É da vida… É isso”, e outras consolos inúteis que nos fazemos quando se vai um fundamental. Então, sem ainda poder falar à altura da sua pessoa e da amizade que construímos, reproduzo esta homenagem que lhe fiz no Dicionário Amoroso do Recife.
Romildo Araújo Lima existe em uma certidão de nascimento. Mas para muitos jornalistas, Ral é quem existe. Ele é chargista, cartunista, ilustrador, artista múltiplo, em uma palavra, Ral. De síntese e simplicidade até no artístico nome.
Homem de poucas falas, de pouca presença cênica, de temperamento contrário à promoção pessoal. Fazer com que ele fale sobre a própria pessoa não é fácil. Eu o conheço há mais de 50 anos. Quando nos vemos, sem palavras nos recordamos de um jornal pequeno, esperançoso e afoito como os loucos, que batizamos de A Xepa em 1973. Ainda assim, quando o entrevisto, evito olhá-lo de frente, porque ele se inibe e se acanha, fala baixo e se cala. É claro, bem sei que nesse particular a minha própria cara não ajuda, em qualquer entrevista.
Artista gráfico
No entanto, esse homem possui uma justa fama de criador, de artista gráfico maior do Brasil. Entendam, Lombroso e o cinema de Hollywood jamais compreenderão qualquer alma humana. Quem vê cara e caricatura de personagem jamais entenderá um criador de caricaturas. Dele já disse, com feliz precisão, o artista múltiplo e desenhista e homem de ação Ziraldo: “O desenho do Ral é primoroso — ele é um artista plástico. Ele tem um traço fino, leve, meio trágico, doloroso, dolorido, muito agressivo. Ele usa uma linha fina e tem sempre uns pontinhos pretos na inserção de suas linhas. Sempre um desenho muito cruel”. Depois, em uma mesa de restaurante completou: “Ral é um Deus do desenho”. A isso comentou Ral, depois: “Quando eu soube disso, eu pensei que ele estivesse se referindo a outro. Eu não sabia que ele se lembrava de mim”. Precisa dizer mais sobre a natureza íntegra e modesta desse artista?
À sua maneira, faço uma síntese de uma entrevista que tivemos, quando ele foi o homenageado do Festival Internacional de Humor e Quadrinhos de Pernambuco. Fala, Ral.
“A diversão da gente, da meninada, era jogar bola e desenhar os heróis das histórias em quadrinhos da época. Fantasma, o Cavaleiro Negro, Tarzan, e a maioria dos meninos, sem recurso, desenhava nas calçadas, com carvão ou giz. E lembro que eu ou estava jogando bola ou desenhando nas calçadas. Um dia eu vi O Pasquim, e resolvi enviar uns desenhos.
Quando eu vi O Pasquim, eu mudei. E me disse: ‘o que eu quero é isto aqui’. Comecei a mudar com O Pasquim. Comecei a estudar os traços dos grandes cartunistas. Algum tempo antes já me impressionava Borjalo, de O Cruzeiro. Então comprei livro, comecei a ler, a me informar, e de repente comecei a sair no Pasquim. Um desenho, outro, uma página, o que terminou por me ajudar muito a entrar nos jornais do Recife. Acho que tenho influência de Ziraldo no traço (no desenho), e de Jaguar no humor. Eu me lembro de um estrangeiro: Folon. Ele possui um traço bem fino. Uma outra influência, mas daqui de Pernambuco, foi Abelardo da Hora. Se você perceber as figuras minhas, da seca nordestina, elas têm um corte na altura dos olhos, que lembram Abelardo. Eu gosto muito de Abelardo da Hora.
Copa de 1958
Quando eu era menino, eu gostava muito de jogar futebol. Eu me lembro que na Copa de 1958, quando o Brasil ganhou, eu botei na cabeça que seria duas coisas: ou jogador de futebol, ou desenhista. Jogador eu até tentei, em Arcoverde cheguei a fazer um teste para jogar no time da minha cidade. Mas o meu físico nunca me ajudou. Imagine que eu sou franzino agora, nesta idade, mas naquele tempo eu era pior, muito mais. Essa homenagem no Festival de Humor, eu até brinquei com o pessoal, quando me chamaram. Eu pensei em três coisas: ou eu estou ficando velho, ou eles estão fazendo uma chantagem emocional para eu voltar a publicar. Ou pensam que vou morrer. Eu acho que acertaram nas duas primeiras coisas”.
Esse é Ral, mas não sei se ele aprovaria tamanha síntese.
Esse era o criador de todas as horas da sua valiosa vida. Ral foi embora lutando contra a maldita até os últimos instantes, desenhando, desenhando e desenhando.
Urariano Mota, é Jornalista do Recife. Autor dos romances Soledad no Recife, O filho renegado de Deus e A mais longa duração da juventude.
As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil