Pedagoga vítima de racismo enfrenta barreiras para fazer valer seu direito

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Publicado terça-feira, 26 de setembro de 2023 as 12:58, por: CdB

O funcionário, que em seguida chamou o gerente para ajudá-lo na enrascada em que se envolvera, não sabia, mas diante dele não estava apenas uma mulher altiva, honesta e com as qualidades intelectuais já descritas.

Por Fábio Lau – do Rio de Janeiro

A comemoração do aniversário se aproximava. E a ideia era ir ao supermercado comprar ingredientes e fazer angu à baiana para uns 200 convidados. Lucimar Cunha dos Santos deixou a creche municipal no Morro do Andaraí, onde é coordenadora, e seguiu para a loja do Supermercado Rede Economia, na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca. Mas o preparativo da festa se transformaria em um dos maiores pesadelos que vivera nos seus 55 anos de vida.

Lucimar,racismo
Autora de livros didáticos, a pedagoga Lucimar Cunha dos Santos foi alvo de discriminação racial

Ali, a pedagoga, autora de cinco livros infantis com exposição em duas bienais, viu-se chamada de ladra de maneira nada sutil: o fiscal da empresa, Marcelo de Oliveira Lopes, travou sua saída e a obrigou a abrir a mochila e provar que não roubara uma peça de carne. O motivo? Para Lucimar é tudo muito óbvio:

Racismo. Lucimar é preta.

 

Crime cometido

Ofendida, humilhada, ela abriu a mochila, mas avisou: quando o senhor constatar que eu não sou ladra, que não há nada além do que comprei comigo, irá me acompanhar à delegacia. Mas ele levou adiante a busca pela carne como se estivesse certo de que encontraria algo. Confirmado o engano, Lopes tentou amenizar o impacto do crime que cometera:

– A senhora me desculpa. Foi um engano. Está liberada!

Lucimar, racismo
Lucimar do Santos esteve entre as autoras mais relevantes na Bienal do Livro

O funcionário, que em seguida chamou o gerente para ajudá-lo na enrascada em que se envolvera, não sabia, mas diante dele não estava apenas uma mulher altiva, honesta e com as qualidades intelectuais já descritas. Lucimar, mãe de um jovem de 30 anos e avó, é também uma das poucas professoras do Rio de Janeiro com formação superior em Marketing e Educação Antirracista.

Desta forma, além de ter provocado a fera, mergulhou num universo onde a vítima conheceria mais aquele território do que ele, e também seu gerente, os PMs que conduziram todos à DP e os policiais civis que teriam como responsabilidade o registro do caso.

— Isso não é Racismo. Só seria se tivessem chamado a senhora de “macaca”. Chamaram? Não? Então é só injúria.

 

Racismo

O policial, que demonstrava indisfarçável enfado por ter que registrar o que, no jargão da tiragem, é chamado “feijoada”, algo que é trabalhoso e pouco rendoso, se assustou quando ouviu os argumentos contrários da vítima. Ele estava diante de uma mulher conhecedora do tema e das dificuldades que a população negra encontra quando se vê diante de casos de Racismo.

Procurado pela reportagem do Correio do Brasil, o supermercado Rede Economia divulgou uma nota fria, quase protocolar, sobre o episódio:

“Prezado, para efeito de esclarecimentos, o caso que está sendo investigado na delegacia é de injúria e não racismo. Segundo, segue o comunicado oficial da assessoria de imprensa da Redeconomia (sic): A Rede Economia tem 25 anos de atuação e não compactua com esse tipo de conduta. Lamentamos esse episódio isolado com Dona Lucimar, e pedimos desculpas pelos transtornos causados. Estamos em apurações internas para tomar as medidas cabíveis.”

O início da nota dá uma indicação de que houve mudança na classificação do crime na delegacia. Ao deixar a DP, na noite daquela quarta-feira, Lucimar, consciente de que fora vítima de racismo, ouviu da polícia que o caso se configuraria em crime de calúnia – artigo 138 do Código Penal com pena de até 2 anos de reclusão.

Mas, para o Supermercado, e talvez numa mudança providencial de entendimento, o registro foi de “Injúria”. Não a “Injúria Racial” recentemente equiparada pelo Supremo Tribunal Federal a crime de Racismo – inafiançável, imprescritível, com previsão de prisão em flagrante e penas que variam de dois a cinco anos e multa.

 

Direito assegurado

Especializado em crimes raciais, Fabiano Machado não teve dúvidas em apontar que o fato ocorrido contra a pedagoga e escritora em uma das lojas da Rede Economia deveria ter sido classificado pela Polícia Civil como “Racismo”:

— O fato vivido no supermercado é indiscutivelmente classificável como racismo.

Mas, para o advogado, que é preto, tal enquadramento exigiria conhecimento da lei e principalmente empatia por parte de quem a aplica.

— Falta empatia por quem faz a avaliação do fato. Muitas vezes o policial militar, que conduz a ocorrência, é branco. O escrivão é branco e o delegado também. Advogados que assumem a causa, representantes do Ministério Público e juízes. Desta maneira a empatia que serviria para aplicar o enquadramento correto não tem a devida representação — acrescentou.

Fabiano Machado lembrou que recentemente o STF equiparou os crimes de Injúria Racial e Racismo – tornando-os ambos inafiançáveis e com previsão de pena de reclusão. Uma das razões, lembrou, é que as autoridades policiais preferiam enquadrar em crime de injúria racial atos de racismo, para imputar um crime menor.

O caso de Lucimar, pontua, é ainda mais grave porque a injúria citada pela defesa do Supermercado não é a atualizada pelo STF, mas a que consta no Código Penal de 1940. Ela prevê inclusive a extinção da investigação.

 

Dificuldades

Lucimar é uma mulher de muita fibra. Uma conversa com ela, por mais rápida que seja, revela altivez, conhecimento prático e teórico da causa racial e disposição de luta. Autora de livros infantis, ela transmite a gerações muito do que ouviu, experimentou e aprendeu numa vida com muitas dificuldades econômicas, sociais e raciais.

Seus livros são:  Mundo da Lua (Lu Oliveira, livro na Tabajara) ; Quem é Gigi; Preto Pretinho, Negro Negrinho, que esteve na Bienal do Livro de 2021;  Meu nome Gigi e, por fim, Jongando – que foi o livro infantil mais vendido da Bienal segundo dados da Casa Kids.

Lucimar, de toda forma, é permeável quando se depara com situações como a que experimentou. Ninguém é de ferro. Há alguns anos, no Shopping Iguatemi, foi abordada por um segurança, preto, que da mesma forma que na semana passada, pediu para ver sua bolsa. Mas ele, diante do aviso de que seria levado à delegacia, desistiu.

Mas ela aproveitou a ocasião para passar um corretivo:

— Disse para ele: como você, um negro, se presta a colocar em xeque a honra de uma mulher apenas pela cor? Você não tinha motivo algum para suspeitar de mim, mas o fez para atender a expectativa da empresa. Isso é um vexame para a nossa raça – o homem baixou a cabeça e saiu.

 

Corpo preto

Mas, na semana passada, o fiscal branco da Rede Economia foi além da sua suspeita e impôs uma vexatória investigação com direito a abrir bolsas e uso de expressões intimidadoras. Mas agora, pela nota da empresa, ele pode estar sujeito a punição.  Lucimar pensa que se fosse uma mulher branca, o fato de ser uma senhora, estar usando uma boa marca, um macacão com etiqueta Zinzane, seriam suficientes para nem sequer despertar a atenção de um fiscal. Mas uma mulher preta, sim.

Ela ensina para seu filho e neto jamais confiarem na empatia ou serenidade de policiais ou fiscais de loja: “a gente é um corpo preto. A gente não pode entrar em supermercado com mochila. Vão suspeitar. Temos que andar sempre com a notinha de um produto adquirido como celular, calculadora, relógio. Temos que provar que não somos ladrões”.

O episódio foi presenciado por duas mães de alunos da escola onde trabalha, o que aumentou sua vergonha. Mas, para agravar, após o episódio, ao ir a outro supermercado comprar ingredientes para o angu à baiana, se descobriu com “crise do pânico” – uma doença que exige acompanhamento psicológico.

— Entrei em desespero com tremor e sudorese. Pensei que poderia acontecer tudo novamente. Comecei a sentir dores e calafrios. Tive que sair, respirar, retomar o batimento cardíaco e voltar para casa. Meu filho e uma irmã fizeram as compras para mim — relata.

E conclui Lucimar:

— Infelizmente, nós, para sermos ouvidos, precisamos estar num saco preto.

 

Fábio Lau é jornalista.

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