O agente, que não pode se identificar, investiga desde 2019 crimes cometidos com o uso de criptomoedas, ativos digitais criptografados, muito mais difíceis de rastrear do que uma mala de dinheiro ou uma conta em um banco no exterior.
Por Redação, com Sputnik - de Brasília
Segundo rastreamento da empresa Crypto Crime Report, foram identificados mais de R$ 200 bilhões em movimentações ilícitas com criptomoedas no mundo nos últimos cinco anos. Especialistas em crimes digitais ouvidos pela agência russa de notícias Sputnik explicam como atua cada grupo criminoso.
As relações de trabalho, as formas de comunicação e diversos outros fatores da vida em sociedade estão a todo instante se transformando a partir da tecnologia. No mundo do crime, a lógica é a mesma.
– Caiu em desuso o famoso 'doleiro', hoje usam criptomoedas – diz uma fonte da Sputnik na Polícia Federal (PF).
O agente, que não pode se identificar, investiga desde 2019 crimes cometidos com o uso de criptomoedas, ativos digitais criptografados, muito mais difíceis de rastrear do que uma mala de dinheiro ou uma conta em um banco no exterior.
– É fácil de transportar, não precisa ser em mala, eles usam uma chave de 'hardware', uma 'hardwallet', que parece um pendrive, mas com bilhões de reais, se for o caso – explica o agente da PF.
Dinheiro ilícito
Segundo ele, muitos criminosos usam dinheiro ilícito para a aquisição de criptomoedas e mantêm a quantia em carteiras virtuais, como ocorre com os dispositivos chamados de "hardwallets", sem intermediação de corretoras ou terceiros.
Com isso, é possível transferir para outro "hardware" ou corretora, inclusive fora do país. "Por ser um ativo digital, não tem fronteira", alerta.
De acordo com um levantamento da plataforma de dados e pesquisa Crypto Crime Report, as transações ilícitas anuais com criptomoedas no mundo saltaram de US$ 4,6 bilhões (cerca de R$ 23,8 bilhões), em 2017, para US$ 14 bilhões (R$ 72,3 bilhões), em 2021.
No total, as transações ilícitas rastreadas nesse mercado somam US$ 42,5 bilhões (R$ 223 bilhões) nos últimos cinco anos.
Do montante do ano passado, US$ 8,6 bilhões (R$ 44,4 bilhões) dizem respeito apenas à atividade de lavagem de dinheiro. Entre outros crimes, o estudo aponta ainda considerável relevância do uso de criptoativos nos chamados "darknet markets", sites comerciais na Internet com transações envolvendo drogas, armas, documentos falsos e outros produtos ilegais.
Criminosos utilizam ainda as moedas virtuais para receber pagamentos por "ransomware", um ataque com sequestro de dados, por meio de criptografia, que faz de refém arquivos pessoais da vítima, e para o financiamento do terrorismo e outras atividades clandestinas e ilícitas, segundo o relatório da Crypto Crime Report.
As estatísticas da empresa são baseadas em crimes e fraudes que foram possíveis de rastrear. De acordo com o especialista da PF, o volume real é maior do que os números mostram.
– Essas empresas globais fazem rastreamento, ajudam corretoras contra fraudes e mostram volumes financeiros. Movimentar um bilhão não é tão significativo (no mercado de criptoativos), mas para o crime, sim – diz o agente.
De acordo com o especialista, boa parte da lavagem de dinheiro em criptomoedas é feita por "grupos ciberterroristas", como o Lazarus Group, da Coreia do Norte.
Em junho, um relatório da empresa de análise de blockchain Elliptic apontou o grupo como principal suspeito de um ataque hacker ao sistema da criptomoeda Harmony, com o roubo de US$ 100 milhões (R$ 525 milhões).
Sancionado pelos Estados Unidos, o Lazarus Group é controlado pelo principal escritório de inteligência da Coreia do Norte, o Reconnaissance General Bureau. Em outras ocasiões, também foram creditados ao grupo grandes ataques cibernéticos, incluindo os de ransomware WannaCry, que afetou mundialmente o sistema operativo Microsoft Windows, em 2017, e o hackeamento da Sony Pictures de 2014.
Hackers norte-coreanos
De acordo com a empresa de análise de blockchain Chainalysis, o ataque contra a Harmony seria o oitavo do grupo apenas neste ano. A companhia afirma que os hackers norte-coreanos já teriam faturado US$ 1 bilhão (R$ 5,25 bilhões) em fundos roubados em 2022, respondendo por 60% do total no segmento.
O major da Polícia Militar do Distrito Federal Maurício Herbert Rodrigues reconhece que a maior parte do dinheiro ilícito não é recuperada pelas autoridades.
Segundo ele, a atuação policial contra grupos criminosos depende de um árduo trabalho de investigação e inteligência, que, no Brasil, vem sendo ampliado nos últimos anos, mas ainda está aquém do necessário para desmontar a maioria das quadrilhas no segmento, sejam hackers estrangeiros ou golpistas brasileiros.
O major explica que a principal dificuldade envolvendo criptomoedas está na descentralização do mercado. Ou seja, não há controle de uma autoridade central no processo de distribuição e dispersão dos ativos.
– É possível transportar grandes quantias para qualquer pessoa em qualquer lugar do país e do mundo. Ela é transfronteiriça. E às vezes o país para o qual vai o ativo é um paraíso fiscal – disse Rodrigues à Sputnik.
Foi basicamente o que ocorreu recentemente em um golpe aplicado na cidade de Itajaí, em Santa Catarina. Em um esquema de pirâmide financeira envolvendo investimento em criptomoedas, mais de 120 pessoas foram seduzidas para o suposto negócio e tiveram um prejuízo total de ao menos R$ 15 milhões, segundo investigação da Polícia Federal.
– A empresa tinha vários 'amigos' conhecidos no negócio e pessoas de confiança que estavam ganhando – relatou à Sputnik uma das vítimas do golpe, sob condição de anonimato.
O caso foi revelado pela PF em maio. Conforme as autoridades, a organização criminosa, de cerca de 20 indivíduos, atuava por meio de bancos digitais sem autorização do Banco Central e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Após a promessa de compensar os investidores com rendimentos acima dos juros de mercado, a principal empresa envolvida encerrou as atividades em 2021 e informou aos clientes que todos os investimentos estariam bloqueados em uma conta na Itália, sede de uma empresa parceira no negócio.
Porém, mais tarde, a empresa brasileira acusou o sócio e empresário italiano de se apropriar do dinheiro. A polícia aponta que os criminosos criaram a narrativa para escapar da investigação.
A vítima que conversou com a reportagem contou que o suposto investimento gerava lucros mensais de 5% sobre o montante aplicado. Ela chegou a retirar parte desses ditos "rendimentos", mas foi surpreendida quando tentou sacar uma quantia maior.
– O dono da empresa dizia que era um bloqueio temporário do acesso ao capital, mas muito tempo se passou e nada foi feito – disse.
A vítima conta que possuía duas unidades de Bitcoin quando o dinheiro foi travado, em outubro de 2021. Naquele mês, a quantia chegou a corresponder a mais de R$ 600 mil, em meio à maior alta da moeda em todos os tempos. Atualmente, com a volatilidade do ativo, dois bitcoins valem aproximadamente R$ 200 mil.
O Bitcoin é a criptomoeda mais conhecida e valiosa do mundo. Na última sexta-feira, ela estava cotada em US$ 19,7 mil (cerca de R$ 103,5 mil). Para efeito de comparação, a segunda mais cara é a Ethereum, que no mesmo dia custava US$ 1,4 mil (R$ 7,5 mil).
A advogada do caso, Karoline Orchel, aponta as principais características do golpe, que devem gerar desconfiança dos investidores.
– Essas pessoas chegam ostentando, com carros de luxo e mostrando seus ganhos no negócio. Isso já chama a atenção de um possível cliente – contou Orchel, em entrevista à Sputnik.
Ela indica pesquisar o passado da empresa e de seus supostos sócios para medir o nível de confiabilidade do negócio. Além disso, uma sugestão importante é só adquirir carteira digital em nome próprio.
– É um investimento que chama muita atenção, porque a rentabilidade é alta. Mas antes de fazer qualquer tipo de investimento, procure saber com quem fará negócio, quanto tempo está no mercado e se existe processo contra ela. E não coloque seu dinheiro em carteira digital de terceiros. Peça uma carteira digital no seu nome – orientou.
Criptomoedas são uma 'mão na roda' para o PCC, diz especialista
Os crimes com criptomoedas, porém, não se limitam a golpes de pequenos grupos ou indivíduos. Pelo contrário. Segundo especialistas consultados pela reportagem, os maiores responsáveis pelo alto volume de dinheiro ilícito que circula como criptoativos são grandes organizações criminosas, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV).
No início deste ano, veio à tona a notícia da morte de dois integrantes do PCC envolvendo um suposto sumiço de R$ 200 milhões em criptomoedas.
Segundo investigações da Polícia Civil de São Paulo, Cláudio Marcos de Almeida, conhecido como Django, e Anselmo Fausta teriam indicado um negócio com empresários do ramo de criptoativos para lavagem de dinheiro. As autoridades apontam que, mais tarde, líderes do PCC não conseguiram reaver o aporte e ordenaram o assassinato dos dois.
O major Rodrigues afirma que esses valores foram os que chegaram ao conhecimento da polícia, mas que o montante total do grupo em criptoativos para lavar dinheiro seria bem maior.
– Não podemos encarar o PCC apenas como um grupo criminoso. Eles já são um grupo empresarial estruturado, com vários setores dentro da organização criminosa. Cooptam advogados para fazer acompanhamento jurídico, tratando de tráfico de drogas e assistência às famílias – indica.
Além disso, ele lembra que o PCC não se restringe mais ao Brasil. O grupo já se expandiu para outros países, onde lidam com narcotraficantes internacionais.
– Dentro disso, não duvido que há uma espécie de sintonia de pessoas para lidar com criptoativos. O PCC já foi identificado pagando cursos (para aprimorar técnicas de integrantes), com pessoas com passagem pela polícia – afirma.
Para o major, a lavagem de dinheiro por meio de criptomoedas facilitou a vida dos criminosos. Além de possibilitar ocultar um enorme volume financeiro sem chamar atenção, o segmento se torna ainda mais atrativo por outros dois fatores: a inexistência de regulação do setor e a falta de prática das autoridades no combate à atividade.
– Eles conseguem transferir grandes quantias de capitais com custos relativamente reduzidos. Para os criminosos que lavam dinheiro, é uma 'mão na roda'. Oculta o valor, não sofre com regulação de órgão de controle nem com inflação, e não há agentes especializados para lidar com a situação de maneira adequada – aponta.
Projeto de lei deixa brechas
Está em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL) n° 4.401, de 2021, que trata de crimes com ativos virtuais, em um primeiro passo para tentar regulamentar o setor no Brasil.
O Senado Federal aprovou o texto em 26 de abril e o encaminhou de volta à Câmara dos Deputados, para a fase de análise de emendas. Porém, devido ao período eleitoral, o PL aguarda na Casa para ser apreciado.
O texto prevê a alteração do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940) e das leis nº 7.492, de 16 de junho de 1986, e nº 9.613, de 3 de março de 1998, para incluir prestadoras de serviços de ativos virtuais no rol de instituições sujeitas às suas respectivas normas.
O autor do projeto, o deputado Aureo Ribeiro (Solidariedade-RJ), afirmou à Sputnik Brasil que a falta de regulamentação do setor provoca a possibilidade de fraudes e deixa o mercado "no escuro".
– Com a falta de regulamentação, as pessoas não têm a quem recorrer – diz Ribeiro.
Segundo ele, o texto permitirá o aumento da pena para crimes de lavagem de dinheiro com o uso de criptoativos e impedirá empresas de operarem no ramo sem autorização.
– Ou seja, todas as empresas que não estiverem legalizadas serão penalizadas. Com a sanção do texto, o mercado vai avançar e se ajustar no Brasil. Não vai ter mais aproveitadores utilizando a tecnologia para enganar milhões de brasileiros – afirma o deputado.
O professor Guilherme Forma Klafke, pesquisador do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI) da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV), avalia que o projeto é importante para trazer regras para o mercado, mas aponta brechas no texto e indica melhorias que deveriam ser estudadas.
Segundo o especialista em direito constitucional, o projeto trabalha com uma realidade defasada, de três anos atrás ou mais. Ele explica que o PL tem a preocupação com ativos virtuais usados como meios de pagamento e formas de investimento, como o Bitcoin, mas não se atenta para fenômenos mais recentes, como os tokens não fungíveis (NFTs, na sigla em inglês).
Estes ativos são certificados digitais, que usam o sistema de segurança da tecnologia blockchain, a mesma de criptomoedas, para armazenar e emitir o atestado de um bem digital exclusivo e original.
– Não sabemos se os NFTs e tokens gerados em jogos, por exemplo, serão considerados investimentos ou não. Posso alegar que comprei um NFT e dizer que não é um investimento – alerta Klafke em entrevista à Sputnik. Dessa forma, esses ativos escapariam da fiscalização para o combate a eventuais crimes.
Há ainda, de acordo com o pesquisador, o risco de choques regulatórios. Ele explica que o texto não estabelece os órgãos reguladores em cada caso e que o Executivo precisará defini-los no decreto quando o PL for à sanção presidencial.
– Temos o Banco Central, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a Receita Federal na regulação do Imposto de Renda (IR), o Procon (Programa de Proteção e Defesa do Consumidor), o Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor) e uma série de órgãos que poderiam agir – enumerou.
O deputado Aureo Ribeiro concorda que o texto ainda "vai exigir atualizações". Segundo ele, a ampliação do debate é "fundamental" para que o mercado brasileiro de criptomoedas possa crescer e ganhar consistência.
Ele reforça que o projeto cria "grande segurança para o investidor e o consumidor" e aponta que é necessário que os órgãos reguladores "possam legislar quanto ao tema" após a aprovação.
– Temos a expectativa de que o projeto seja votado após as eleições. Com o avanço na tramitação, damos um passo importante, mas não definitivo – afirmou.