O Direto da Redação é um fórum de debates e, hoje, publicamos o segundo texto sobre o tema geral Por que junho de 2013 marcou o Brasil? O texto é de autoria do atual responsável pelo blog Náufrago da Utopia, criado pelo conhecido militante contra a Ditadura Militar, Celso Lungaretti, e atualmente sob a direção de David Emmanuel Coelho. Não se esqueçam de colocar seus comentários. Esse texto se divide um duas partes, a primeira trata da Questão Urbana. (RM).
Por David Emanuel Coelho
Em 2013, a população brasileira já era 85% urbana, auge de um processo de crescimento das cidades iniciado com o êxodo maciço das décadas de 1950-1970. Na região Sudeste, a mais populosa, o índice de urbanização passava de 93%, com três grandes regiões metropolitanas à frente, São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.
A ocupação dos espaços urbanos durante esse período foi caótica e desigual, com massas de indivíduos ocupando terrenos devolutos, sobretudo à beira de estradas, corredeiras de água e regiões de mata. Mesmo loteamentos regulares ocorriam de forma desestruturada, não raro sem a devida infraestrutura para dar suporte às habitações, além de ficarem longe dos serviços.
A insuficiência crônica do capitalismo brasileiro, dominado pela mais-valia absoluta e pela remessa de valor para os países centrais, sempre tornou o mercado de trabalho deficitário, gerando desemprego massivo. Por isso, muitos indivíduos das cidades brasileiras jamais tiveram trabalho formal, vivendo entre bicos, crimes ou atividades esporádicas. Tal situação viria a piorar imensamente com a derrocada da indústria nacional, que de nacional tinha apenas o nome, pois controlada pelas burguesias dos EUA e da Europa.
Após a indústria ser transferida pelas burguesias centrais para a Ásia, a economia brasileira entrou em processo de mudança de sua base produtiva, acentuando a natureza extrativista e, portanto, pressionando pela exploração da renda da terra. Esse processo foi acompanhado pelo crescimento do sistema financeiro graças à instituição de mecanismos para conter a inflação que passavam sobretudo por altas taxas de juros capazes de conter divisas no país e manter a taxa do câmbio em patamares aceitáveis.
O fortalecimento do sistema financeiro foi o grande responsável pela expansão do crédito tanto às pessoas físicas, quanto às empresas, pois mesmo diante de taxas de juros elevadas, a alta liquidez de moeda garantia o processo de financiamento. Sem indústria, as mercadorias passaram a ser importadas, o que no fim não era um problema devido ao câmbio valorizado.
Nas grandes cidades, a exploração da renda da terra ocorreu mediante a especulação imobiliária. Grandes empreendimentos e grandes obras começaram a substituir antigas comunidades ao mesmo tempo em que inflacionavam o valor de aluguéis resultando no deslocamento de contingentes populacionais para lugares ainda mais distantes e precários.
Por isso, as periferias urbanas ganharam elas próprias suas periferias, localizadas principalmente nas cidades ao redor das metrópoles. Com serviços e empregos ainda localizados nas áreas centrais, o transporte público passou a ser essencial, com deslocamentos de horas feitos sobretudo em ônibus, já que o transporte ferroviário foi praticamente extinto no país.
Passagens caras, veículos arruinados, lotados e horários descumpridos são o normal enfrentado por quem depende do transporte público brasileiro. Para fugir da humilhação diária, milhões adquirem automóveis, fato facilitado justamente pela abundância de crédito, o que contribui para a piora da qualidade da vida urbana com o aumento de congestionamentos e da poluição. A própria existência de uma frota maior pressiona pelo crescimento da malha rodoviária e pela construção de estacionamentos, retroalimentando a especulação imobiliária.
De fato, as contradições nas grandes metrópoles só cresceram, ampliando também as tensões sociais. Para dar conta, o sistema repressivo foi expandido e reforçado, existindo não apenas as forças policiais tradicionais, mas também forças privadas, todas elas militarizadas e armadas até os dentes para uma guerra sem trincheiras. Não é preciso gastar muito tempo para debater sobre o nível de truculência destas forças, bastando lembrar en passant que o Brasil é campeão mundial em violência da polícia.
Em muitos locais, a única presença do Estado é por intermédio da força policial, rotineiramente fazendo incursões sob o pretexto do combate ao tráfico de drogas. A maioria pobre e negra da população acaba sendo o alvo preferencial da violência e das abordagens sistemáticas, com ou sem causa fundada. Não raro ocorrem chacinas comandadas por agentes policiais e também não é incomum que estes sejam líderes de grupos criminosos dos mais variados tipos.
Ou seja, as forças policiais acabam se somando a um ambiente de crise, contando como parte do problema e pouco como parte da solução. Não à toa, na explosão de Junho de 2013, a violência policial teve papel preponderante, muito maior inclusive que a questão do transporte público.
Em resumo, as grandes cidades brasileiras passaram a abrigar o centro das contradições do capitalismo nacional com a precariedade das condições de vida, o subemprego, a violência, o caos do transporte, a ausência ou desestrutura dos serviços públicos e o altíssimo custo de vida. Nesse contexto é que o governo Lula decide sediar a Copa do Mundo de 2014 e as Olímpiadas de 2016, ampliando a especulação imobiliária e escancarando a falta de prioridades do governo para com a população trabalhadora.
Os megaeventos deveriam ser o coroamento apoteótico do novo Brasil da propaganda lulopetista em que supostamente a miséria, a fome e o atraso teriam se tornado passado. Acabaram, contudo, sendo o pontapé da dissolução desse projeto político, mostrando de fato o quanto ele estava podre e oco.
Por David Emanuel Coelho, atual editor do blog Náufrago da Utopia
Direto da Redação é um fórum de debates publicado no jornal Correio do Brasil pelo jornalista Rui Martins.