Tanto a escritora francesa Fred Vargas, autora do livro A Verdade sobre Battisti, como o jornalista Rui Martins, que sempre defenderam o italiano, continuam acreditando firmemente em sua inocência.
O ex-presidente Lula, numa entrevista à TV Democracia, pediu desculpas à esquerda italiana e às famílias das supostas vítimas de Cesare Battisti. Mas esqueceu de dizer muitas coisas, então, a bem da verdade, vou colocar os pingos nos is.
Em meados de 2008 recebi telefonema de Brasília, de um participante do Comitê de Solidariedade a Battisti, apelando-me para que entrasse naquela batalha de opinião pública.
Aceitei de imediato. Não o fizera antes porque nunca tive compulsão por holofotes e acreditava que outros esquerdistas já lhe estariam fornecendo suficiente apoio. Mas, tenho a solidariedade revolucionária como um valor sagrado; quando recorrem a mim e eu tenho uma contribuição a dar, jamais a nego.
Então, ao tomar conhecimento de que um único jornalista (Rui Martins) vinha sistematicamente refutando as falácias da imprensa burguesa a respeito do Battisti, mas o fazia desde a distante Suíça, percebi que faltava alguém complementando seus esforços no palco principal dos acontecimentos.
Ignorava se o Battisti era ou não culpado do que o acusavam, mas sabia que:
— o governo italiano cometera um rosário de ilegalidades durante os anos de chumbo, atuando com tendenciosidade e rigor extremos contra os ativistas de esquerda e empenho bem menor contra os responsáveis pelos grandes morticínios causados pela direita, como o massacre de Bolonha (85 mortos e mais de 200 feridos) e o atentado da Piazza Fontana (17 mortos e 88 feridos), havendo até hoje questionamento sobre provável acobertamento dos mandantes;
— 29 anos depois do último dos quatro assassinatos dos Proletários Armados pelo Comunismo cuja culpa foi atirada nas costas de Battisti, tendo ele desistido da política, constituído família e se consagrado como escritor, era uma perseguição odiosa a que lhe moviam Berlusconi e seus neofascistas, obcecados em obterem um troféu impactante para exibir; e
Bolonha: pior massacre dos anos de chumbo italianos |
— seria a hipocrisia suprema o Brasil extraditar Battisti após ter abrigado carrascos como o coronel haitiano Albert Pierre (que, chefiando os Tonton Macoutes, fora responsável por mais de 500 episódios de assassinatos e torturas) e o ditador paraguaio Alfredo Stroessner.
No primeiro contato pessoal que tive com Papuda (vejam aqui as minhas impressões), tive absoluta certeza de que ele não era homem capaz de matar ninguém. Na luta armada brasileira e depois, na carreira jornalística, conhecera muitos que o eram e havia gritante diferença. O muito que li posteriormente sobre o caso e sobre a montagem do segundo julgamento italiano (no qual, à revelia, foi agravada sua pena) só veio confirmar minha intuição inicial.
No entanto, após o pusilânime Evo Morales cometer suicídio moral, entregando-o à Itália como René Barrientos entregara Che Guevara à CIA, Battisti, já bastante abalado pela perseguição sem fim em que se tornara sua vida, fez uma barganha podre com a Justiça italiana.
Aceitou admitir a culpa por homicídios pelos quais fora condenado sem provas reais em troca de bom tratamento na prisão, com direito a receber o apoio da família, comunicar-se amiúde pelos meios eletrônicos com o filho brasileiro e escrever seus livros (estes pontos acordados nem sequer estariam sendo cumpridos pelas autoridades italianas, segundo ele se queixa nas suas cartas recentes!).
De que sua surpreendente confissão de culpa foi fajuta, não tenho a mais remota dúvida. Afinal, é público e notório que, dos quatro assassinatos que delatores premiados cometeram e lhe imputaram para serem libertados o quanto antes, dois foram praticamente simultâneos, não havendo nenhuma possibilidade material de ele estar presente em ambos. Por que haveria ele de confessar até um crime que não poderia ter cometido de jeito nenhum?
Candidatura fantasma: confusionismo e perda de tempo |
Quanto a Lula, que sempre se colocou na contramão de uma transformação em profundidade da sociedade brasileira, preferindo apenas negociar pequenas concessões com o poder burguês e por meio delas garantir o voto dos coitadezas (tanto que já na década de 1980 tudo fazia para expurgar as tendência de esquerda que atuavam dentro do PT), não é de hoje que ele está contra Battisti.
Como principal porta-voz do comitê de solidariedade no Brasil, muitas vezes eu recebia informações sigilosas de companheiros jornalistas, indignados com o jogo de interesses políticos e econômicos nos bastidores do caso. Então, tive informação segura de que:
— o Lula estava disposto a lavar as mãos e omitir-se, caso o STF decidisse por si só extraditar Battisti;
— mas, se a decisão final lhe coubesse, ele vetaria a extradição, porque não queria indispor-se com alguns dirigentes influentes do PT para os quais rechaçar as pressões italianas era uma questão de honra.
O desespero do ministro Gilmar Mendes quando seu colega Ayres Britto votou a favor de que a última palavra coubesse ao presidente da República, como sempre foi a tradição brasileira, serviu como atestado eloquente de que a informação que eu havia recebido era correta.
Tão transtornado Mendes ficou com tal posicionamento que chegou a ser grosseiro em plenário com o Ayres. Por que? Porque sabia que aquele voto era decisivo (ou seja, estava ciente das intenções do Lula).
De resto, ao invés dessas desculpas perfeitamente dispensáveis acerca do Caso Battisti, o que Lula está nos devendo é uma autocrítica pelos erros fatais cometidos ao longo da atual década:
Manifestantes de 2013 foram abandonados à sanha dos inimigos |
—começando em 2013 pelo abandono dos manifestantes do Passe Livre que foram triturados por polícias e judiciários estaduais reacionários, ante a indiferença do PT, o que levaria adiante à perda das ruas e à reação pífia quando do impeachment da Dilma; e
— terminando por haver inviabilizado a união da esquerda contra Bolsonaro na eleição presidencial, além de ter desperdiçado tempo precioso com sua ridícula candidatura fantasma, dando mais importância à obtenção de uma espécie de desagravo por suas condenações do que ao imperativo de salvar os brasileiros do pesadelo neofascista que se prenunciava.
Isto para não falar de haver reduzido o PT a uma caricatura de partido oposicionista, a ponto de recusar-se a enfrentar nas ruas a escalada golpista do Bolsonaro em maio/junho últimos, deixando que secundaristas e Gaviões da Fiel fossem correr riscos em seu lugar.
Por Celso Lungaretti, um dos colaboradores neste Direto da Redação, é um dos sobreviventes dos chamados Anos de Chumbo, quando o Brasil vivia a Ditadura Militar, tão elogiada por Bolsonaro.
Direto da Redação é um fórum de debates publicado pelo jornalista Rui Martins.