Um encontro marcante com Luiz Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, em meio ao contexto político do II Congresso Nacional da Anistia em Salvador, 1979.
Por Luiz Manfredini – de Brasília
Ocorreu-me passar por Salvador, mera coincidência, justamente no dia em que seria inaugurado o II Congresso Nacional da Anistia, 15 de novembro de 1979. A anistia já havia sido concedida em agosto, mas era limitada, não atingia todos os que foram perseguidos pela ditadura e ainda perdoava os agentes da repressão política, incluindo os torturadores. Assim, o Comitê Brasileiro pela Anistia resolveu marcar posição em favor da anistia ampla, geral e irrestrita realizando um segundo congresso.
Soube do evento lendo a primeira página de um jornal exposto em banca. Na hora anunciada, eu lá estava. Auditório lotado. Não conhecia ninguém, de modo que fiquei à toa, zanzando de um lado para outro enquanto aguardava a abertura, observando faixas, cartazes e fisionomias. De repente, percebi um burburinho a três, quatro metros de onde eu estava. Um amontoado de gente que parecia voltar-se para algo que eu não consegui perceber. Curioso, caminhei alguns passos e ali estava ele, no centro da aglomeração, estendendo a mão para cumprimentos, recebendo abraços, espremido entre admiradores, falando pouco, sorrindo pouco, avançando lentamente em direção ao palco. Baixa estatura, tez acobreada.
A visão de Luiz Carlos Prestes me causou um impacto que reverbera até hoje, quando recordo aquele encontro de décadas atrás. Minha formação política desde cedo me afastara de Prestes, considerado por mim e por meus companheiros, pelas ideias que passara a defender a partir do final dos anos 1950, uma espécie de amortecedor dos ímpetos revolucionários, muito reformista, muito conciliador. Mergulhados em um oceano de intolerância, endereçávamos a Prestes uma montanha de acusações políticas e ideológicas, responsabilizando-o por quase tudo que dera errado na trajetória revolucionária no país.
Cavaleiro da Esperança
Ocorre que, até assumir essa postura de crítica acerba em relação a Prestes (o que ocorreu quando contava dezesseis anos), eu tinha o Cavaleiro da Esperança como um dos meus heróis. Tentei, em vão, surrupiar da biblioteca de uma tia a biografia escrita por Jorge Amado em 1944. No meu caminho para a escola, no paredão de um edifício, havia uma pichação, Viva Luiz Carlos Prestes. Eu lia e relia a pichação, e só me restava aquela frase curta e já desbotada para refletir sobre o revolucionário que meu avô e meu pai tanto admiravam.
Diante de Prestes, ali na aglomeração que antecedeu a abertura do congresso, sequer pensei nas diferenças políticas e implicâncias ideológicas que até então me separavam do Cavaleiro da Esperança. Ao contrário, pensei na coluna, na insurreição de 1935, nas lutas democráticas e progressistas nas quais ele esteve à frente com absoluta dedicação, na prisão sob o Estado Novo e na entrega da alemã Olga Benário, sua mulher grávida, aos nazistas. Veio-me, sobretudo, uma das cenas mais generosas da história política do país, quando Prestes, recém libertado de nove anos de cadeia, subiu ao palanque ao lado de Getúlio, seu carrasco e carrasco de Olga, porque assim cobrava a luta democrática. Até hoje há quem não entenda esse largo, profundo desprendimento.
Então ali estava aquele homem de baixa estatura e tez acobreada, aquele homem reverenciado por multidões. E eu, que tanto o criticara, devorando-o com olhos de admiração. Não me recordo do discurso de Prestes, que chegara de um longo exílio na União Soviética vinte dias antes. Ficou-me apenas o momento em que o Velho, como carinhosamente era referido por seus camaradas, disse que as classes dominantes brasileiras jamais conseguiriam eliminar seu nome da história do Brasil.
No ano seguinte, Prestes romperia com o partido que liderou por tantas décadas e que acusava de degeneração. Morreu no Rio de Janeiro em 7 de março de 1990, aos 92 anos de idade.
Luiz Manfredini, é jornalista a escritor paranaense, autor, entre outros livros, dos romances “As moças de Minas”, “Memória e Neblina” e “Retrato no entardecer de agosto”.
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