Os relatos de pessoas em situação de rua apontam, contudo, que a medida não está sendo cumprida. Além disso, conforme o Decreto 59.246, de 2020, os fiscais municipais são proibidos de retirar pertences pessoais da população de rua.
Por Redação, com RBA - de São Paulo
A operação da prefeitura de São Paulo para remoção de barracas que abrigam a população em situação de rua na região central da cidade, iniciada na segunda-feira, é objeto de grande número de denúncias de violação de direitos e de hostilidades.
A retirada das moradias improvisadas pelas pessoas em vulnerabilidade estava suspensa desde 17 de fevereiro. Mas o governo do prefeito Ricardo Nunes (MDB) conseguiu, na última sexta, derrubar a liminar que proibia a ação.
Com o aval dado pela Justiça, já nas primeiras horas da manhã desta segunda pessoas em situação de rua amanheceram com a presença da força-tarefa formada por fiscais, Guarda Civil Metropolitana (GCM) e Polícia Militar (PM). No entanto, além de recolher as barracas, os pertences das pessoas foram tomados. Uma das operações, no bairro da Luz, foi acompanhada de perto pelo padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua. “Retiraram (tudo), agora o que eles oferecem?”, questionou.
Em depoimento ao religioso, um idoso denunciou. “Nós, que convivemos no meio da rua, como moradores de rua, somos seres humanos, somos cidadãos igual a todos de São Paulo. A prefeitura chegou aqui, não pediu nada, tomou tudo de nós: nossas barracas, mantas, roupas, documentos, tudo que nós moradores de rua temos”, lamentou. Ainda segundo ele, também não foi oferecido o documento chamado contra-lacre, que confirma a apreensão e guarda dos pertences. “Nada de lacre, só ofereceram porrada”, completou o idoso.
Padre Júlio e a hostilidade
Na última sexta, após a decisão do desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Ribeiro de Paula, em favor do governo Nunes, o subprefeito da Sé, coronel Álvaro Camilo, afirmou que seria dado o lacre, com a lista de itens apreendidos e o endereço para que o dono pudesse retirá-los da custódia daquela subprefeitura.
Os relatos de pessoas em situação de rua apontam, contudo, que a medida não está sendo cumprida. Além disso, conforme o Decreto 59.246, de 2020, os fiscais municipais são proibidos de retirar pertences pessoais da população de rua. Ou seja, documentos de qualquer natureza, cartões bancários, sacolas, medicamentos e receitas médicas, livros, mochilas, roupas, entre outros utensílios, como muletas e colchonetes.
O padre Júlio acusa mais uma violação brutal dos direitos da população de rua de São Paulo. Ele afirma que “com a liminar ou sem a liminar, a prefeitura age da mesma forma. Eles mesmos têm um decreto que não podem tirar objetos de sobrevivência. E tiram. Eles tiram da mesma forma. E agora estão tirando com ‘mais alegria’ e mais violência, porque agora caiu a liminar. E quem reage, apanha. Quem reage é reprimido, não tem outra saída. Eles vêm com PM, com GCM, com força policial para tirar.”
Sobre a ação
Padre Júlio é um dos autores da ação popular movida em conjunto com o deputado federal Guilherme Boulos (Psol-SP), entre outros, que havia conseguido suspender a operação de retirada das barracas. A ação foi agora derrubada pelo desembargador até que o TJ julgue o mérito do caso. Deputados e movimentos sociais já confirmaram que entrarão com recurso contra a decisão.
Ricardo Nunes, no entanto, comemorou a cassação da liminar em postagens no sábado. “Rua não é endereço, barraca não é lar. Não é digno pessoas nas ruas expostas ao sol, chuva, sem banheiro, sem chuveiro, torneira”, afirmou o prefeito, que “oferece” vagas nos Centros de Acolhida da cidade. Segundo a administração municipal, a rede conta com 21 mil vagas. Porém, as instituições apontam que essa oferta é insuficiente para atender a demanda.
De acordo com o censo da população em situação de rua em São Paulo, divulgado no início de 2022 pela empresa Qualitest e a própria prefeitura, a capital paulista tem cerca de 32 mil pessoas sem-teto. A mesma pesquisa mostrou que, em dois anos, o número de barracas havia aumentado em 330%. Levantamento do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, da Universidade Federal de Minas Gerais (Polos-UFMG), com base em dados do Cadastro Único, atualizou os dados da tragédia social na maior cidade da América do Sul.
Condição dos sem-teto
Este novo levantamento, publicado em janeiro, indica 48,2 mil pessoas vivendo nas ruas de São Paulo. É o maior número já registrado desde o início da série histórica, em 2012. O dado indica ainda que a capital paulista concentra 25% da população em situação de rua de todo o país.
Além disso, condições insalubres e precárias marcam os centros de acolhimento da prefeitura para essa população. A Comissão de Direitos Humanos da Câmara de São Paulo aponta galpões superlotados e sem o número adequado de funcionários, banheiros e materiais de higiene insuficientes, além de instalações infestadas de pombos, pulgas e percevejos.
Em nota, Boulos afirmou ser “absurdo que a Prefeitura considere que a população sem teto viva nas ruas por vontade própria, e não por estarem abandonados pelo poder público”. O deputado federal acrescentou que “a questão dos sem teto precisa ser resolvida de maneira estrutural, e não com o uso de violência para tirar o pouco que sobrou de quem já não tem quase nada”.
Pedido de trégua
Na manhã desta terça-feira, o padre Júlio informou que ligou ao prefeito, apelando para que a retirada das barracas seja suspensa nesta semana, em que as religiões cristãs comemoram o feriado de Páscoa. Para a próxima sexta, a Pastoral do Povo de Rua prepara a Via Sacra, junto à essa população, para denunciar a violência da operação e o descaso da sociedade em relação a esta população. A manifestação está marcada para às 9h, no Largo São Bento.
– Ele (Ricardo Nunes) diz que estão solicitando para desmontar (as barracas). Mas não é isso que estamos vendo”, afirmou padre Júlio em suas redes. “A prefeitura deve visitar cada barraca e ver quem está lá, quantas pessoas são, o que elas necessitam. Pedi a ele que a assistência social converse e chegue com a resposta. Para que a família tenha a resposta de um lugar para elas ficarem, não arrancar as barracas como está sendo feito – concluiu.