É necessário trabalhar para que a democracia seja experimentada por pretos, pobres, favelados e periféricos. Só assim será possível resgatar a legitimidade do Estado e lastrear as ações de um governo progressista.
Por Josué Medeiros e Guilherme Simões – do Rio de Janeiro
A sociedade brasileira vive hoje o desafio de reconstruir a legitimidade da política e da democracia no Brasil junto ao conjunto do nosso povo. Não é uma tarefa fácil e não teremos êxito sem constituir uma mobilização coletiva da cidadania na direção de um efetivo combate às desigualdades. E não é possível impulsionar essa mobilização sem colocar as periferias das grandes e médias cidades no centro da democracia brasileira.
Somos uma nação de maioria urbana desde os anos 1960 e durante a Ditadura Militar essa urbanização se desenvolveu de modo desigual, empurrando dezenas de milhões de pessoas para as favelas, comunidades, quebradas, em suma, para as periferias das médias e grandes cidades de norte a sul do País. A redemocratização não alterou esse curso, muito pelo contrário, e o neoliberalismo hegemônico nas décadas de 1980 e 1990 radicalizou as desigualdades urbanas no Brasil. A criação do Ministério das Cidades, em 2003, e o conjunto de políticas públicas que o acompanha produziram avanços significativos, mas não o suficiente para transformar esse quadro de forma estrutural.
O resultado é que hoje dezenas de milhões de brasileiras e brasileiros vivem nas periferias em condições de múltiplas vulnerabilidades sociais e econômicas, de raça e gênero, ambientais e regionais. É impossível reconstruir e unificar o Brasil sem encarar de frente e de fato o desafio de garantir e ampliar os direitos das pessoas que vivem nos territórios periféricos brasileiros.
É um desafio e tanto, mas é um desafio que pode, sim, ser alcançado se tivermos vontade política. As periferias também são potência, nosso povo que vive nas favelas e comunidades constrói dia a dia laços comunitários, redes de solidariedade, tecnologias sociais e formas de ocupação do território que podem irrigar as instituições com uma energia viva e criativa sem igual e indispensável para a cidadania.
A criação da Secretaria Nacional de Periferias dentro do reestabelecido Ministério das Cidades é, nesse sentido, um enorme alento e uma sinalização de que favelas e periferias devem ocupar um lugar de destaque na elaboração e efetivação de políticas públicas. Com menos de um ano e meio de atuação, a SNP: visitou cerca de 150 territórios; criou o Mapa das Periferias, identificando milhares de iniciativas periféricas; criou o Prêmio Periferia Viva, que anunciará sua segunda edição em junho; elaborou o projeto Periferia Sem Risco, auxiliando municípios a produzirem medidas de redução de riscos de desastres; fez uma parceria histórica com os Correios para levar agências e fazer endereçamento de favelas; e, finalmente, criou o Programa Periferia Viva, uma revisão do histórico e fundamental programa de urbanização de favelas que visa articular políticas públicas diversas, tanto em nível federal como localmente.
Periferia Viva
O Periferia Viva despejará mais de 7 bilhões de reais em favelas e periferias nos próximos anos, com o objetivo claro de contribuir para o combate às desigualdades sociais e o aproveitamento das potencialidades periféricas. Além de obras de infraestrutura urbana, o Periferia Viva levará outras ações do governo federal para os territórios que mais precisam. Um dos exemplos mais extraordinários de política pública forjada territorialmente, as Cozinhas Solidárias devem fazer parte do Programa, atendendo inicialmente 58 territórios em 48 municípios diferentes.
Uma política coordenada pelo Ministério das Cidades, com a participação direta de outros vários ministérios e em parceria com municípios e organizações territoriais é, em nossa visão, uma das formas mais significativas de se chegar aos territórios periféricos com bastante peso, considerando o volume de investimentos e a forma integrada e participativa das intervenções.
Muito se fala em defender a democracia como estratégia para derrotar o autoritarismo e o irracionalismo da extrema-direita. Para vencermos essa batalha, será necessário trabalhar para que a democracia possa ser experimentada por pretos, pobres, favelados e periféricos. Só assim será possível resgatar a legitimidade do Estado e lastrear as ações de um governo progressista. Não adianta tentar desviar, pois não há outro caminho que não passe pela favela.
Josué Medeiros, é cientista político e professor da UFRJ e do PPGCS da UFRRJ. Coordena o Observatório Político e Eleitoral (OPEL) e o Núcleo de Estudos sobre a Democracia Brasileira (NUDEB).
Guilherme Simões, é cientista social e militante do movimento popular urbano. É o primeiro Secretário Nacional de Periferias do Brasil.
As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil