Rio de Janeiro, 21 de Dezembro de 2024

Como São Paulo legitima a violência policial

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Quinta, 12 de Dezembro de 2024 às 09:08, por: CdB

Se, no passado, os massacres eram menos visíveis, hoje, sob a luz de câmeras, vemos a atuação sangrenta de um sistema cuidadosamente estruturado.

Por Amarílis Costa – de Brasília

Desde a última coluna, novos casos de violência policial em São Paulo vieram à tona e ampliaram a escalada de abusos no Estado. Na Baixada Santista, um jovem de 24 anos foi morto a tiros pela Polícia Militar na frente da mãe, que implorava desesperadamente pela vida do filho. Em Campinas, uma dona de casa foi atingida por um golpe violento com uso de algemas, semelhante a um soco inglês, durante uma abordagem. Na Zona Sul da capital, um PM foi flagrado ao pisar na cabeça de um motorista de aplicativo já imobilizado no chão.

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Guilherme Derrite e Tarcísio de Freitas

No jargão policial, temos exemplos do modus operandi desejado ao bom policial pelo secretário de segurança pública do Estado. Enquanto Derrite sorri, somos pouco a pouco derrotados, vivendo o inferno. Não se trata de algo recente, nem fruto de uma única gestão. É o resultado de décadas de políticas públicas que transformaram o aparato estatal em uma máquina de repressão altamente eficiente. Se, no passado, os massacres ocorriam de forma menos visível, hoje, sob a luz de câmeras (quando elas funcionam), observamos o reflexo de um sistema cuidadosamente estruturado para punir os corpos negros e periféricos, enquanto justifica essas ações sob o manto da eficiência administrativa.

Nas últimas décadas, governadores do Estado consolidaram a violência policial como ferramenta de controle social. A troca de comandos na Polícia Militar, o enfraquecimento de comissões de controle, o sucateamento da Polícia Civil e a transformação da administração penitenciária compõem esse quebra-cabeça. Cada ato administrativo representou uma “gota de tinta”, que, juntas, criaram um rio de sangue nas periferias paulistas.

O governador Tarcísio de Freitas, ao comentar as críticas internacionais sobre a atuação da polícia no Estado, chegou a dizer: “Podem ir na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí.” A frase simboliza uma postura de indiferença em relação ao impacto social dessas políticas e reforça o distanciamento do governo frente às consequências dessa escalada de violência.

O caso das câmeras corporais é um exemplo. Quando implementadas, foram celebradas como um avanço no controle da letalidade policial. Porém, a gestão atual promoveu mudanças que exigem o acionamento manual dos dispositivos, o que enfraqueceu sua eficácia. Embora Tarcísio tenha recuado recentemente e admitido o erro de sua postura inicial ao criticar as câmeras, os danos causados pela decisão reativa continuam evidentes e agravam os impactos da alta letalidade policial. Diante desse cenário, o Supremo Tribunal Federal determinou o uso obrigatório de câmeras nos uniformes de policiais em operações no Estado de São Paulo. A decisão inclui, entre outras medidas, a gravação ininterrupta até que a eficácia de sistemas automáticos seja comprovada.

Em 2024, até 17 de novembro, 673 pessoas foram mortas por policiais militares no Estado de São Paulo, segundo o Ministério Público. Dessas, 577 mortes ocorreram com policiais em serviço e 96 com agentes de folga. Os números representam um aumento de 46% em relação ao mesmo período de 2023 e configuram uma média de quase duas vítimas por dia. Esses dados não apenas apontam para uma gestão linha-dura, mas também para um modelo que tornou a violência uma rotina. A escalada da letalidade não pode ser analisada sem considerar o impacto cumulativo dessas decisões ao longo dos anos.

A visão de letalidade como mérito institucional também foi expressa pelo secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, ao afirmar que considera “vergonhoso” um policial trabalhar por cinco anos sem registrar pelo menos três mortes em seu currículo. Essa lógica consolida o extermínio como parte intrínseca do trabalho policial, banalizando a perda de vidas em ações do Estado.

Ana Flauzina, em Corpo Negro Caído no Chão: o Sistema Penal e o Projeto Genocida do Estado Brasileiro, oferece uma análise contundente sobre como o racismo estrutural molda o sistema penal, que resulta na exclusão sistemática e na violência dirigida aos corpos negros. A autora argumenta que o Estado brasileiro, ao longo de sua história, consolidou um projeto genocida que tem no sistema penal uma de suas principais ferramentas de execução. Essa lógica é evidente na atuação da polícia em São Paulo, em que a letalidade policial, longe de ser acidental, reflete uma política pública deliberada que reproduz desigualdades raciais. Como aponta Flauzina, o sistema penal brasileiro foi projetado para operar como um “aparato de gestão da vida e da morte”, regulando quem vive e quem morre com base na racialização dos corpos.

Violência policial se prolonga

A violência policial se prolonga, transfixa lares, perfura sonhos e corrói futuros antes mesmo de florescerem. A mãe de Ryan, menino de quatro anos morto na Baixada Santista, carrega em seu peito as marcas de um luto acumulado, em que a bala que ceifou seu filho ecoa a perda do marido em outra investida da mesma engrenagem fatal. Para essas famílias, a violência não é um evento isolado, mas uma sina que atravessa gerações, corpos e almas com sua brutalidade incessante. Nas palavras de Elza Soares, em A Carne, “vai de graça pro presídio e para debaixo do plástico”, está a essência do desprezo de um sistema que dispara contra corpos negros com precisão e desumanidade, deixando histórias interrompidas e vidas embrulhadas na invisibilidade. A cada estampido, uma promessa de silenciamento, a cada vida perdida, um ciclo interminável de dor e exclusão.

Para compreender o presente momento, é preciso revisitar as feridas que a história insiste em deixar abertas. Em São Paulo, o massacre do Carandiru, a repressão brutal e a criminalização da pobreza, somadas à atuação sanguinária do braço armado do Estado, revelam a escolha deliberada do extermínio como política de controle. Os governadores, ao longo das décadas, brincam de Deus, selam destinos com canetadas, encomendam almas e empilham corpos em uma lógica que transforma a violência em administração pública. Sob a fachada da legalidade, os princípios constitucionais são transfigurados em ferramentas de repressão: a moralidade dá lugar à brutalidade, a impessoalidade se converte em indiferença e a eficiência se mede pelo volume de sangue derramado.

Como narram os Racionais MC’s, em Diário de um Detento, “o ser humano é descartável no Brasil, como modess usado ou Bombril”. A brutalidade não é acidente, é projeto. Essa lógica genocida transcende as décadas e os governos, enquanto os líderes se omitem e fingem neutralidade diante do horror. “Ratatatá, caviar e champanhe, Fleury foi almoçar, que se foda a minha mãe!”.

É fundamental que o Estado brasileiro reconheça a ineficiência do pilar punitivo isolado e amplie os mecanismos de acesso à cidadania para a população negra. A cidadania plena, garantida constitucionalmente, deve ser viabilizada por meio de políticas públicas que assegurem não apenas o ingresso em ambientes educacionais, econômicos e políticos, mas também a permanência digna nesses espaços. A evolução das práticas racistas, que hoje se manifestam de forma mais simbólica e institucional, exige uma resposta robusta do sistema jurídico e da administração pública, alinhada aos princípios constitucionais de igualdade, dignidade humana e justiça.

A política de extermínio não mata apenas fisicamente. Ela destrói simbolicamente comunidades inteiras, alimenta o medo e consolida a sensação de abandono. Para cada morte registrada, há centenas de vidas marcadas pelo trauma de enterrar amigos, filhos e vizinhos. Enquanto discutimos números e estatísticas, esquecemos que cada dado representa uma história interrompida. A violência policial não é um problema isolado. Quem poderá nos defender?

 

Amarílis Costa, é advogada, doutoranda em Direitos Humanos na Faculdade de Direito USP, mestra em Ciências Humanas, pesquisadora do GEPPIS-EACH-USP, diretora executiva da Rede Liberdade.

As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil

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