Rio de Janeiro, 26 de Dezembro de 2024

Alinhamento entre Bolsonaro e Trump significa ideologizar a política externa, alerta Felipe Loureiro

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Sábado, 06 de Junho de 2020 às 10:29, por: CdB

Tanto Trump quanto Bolsonaro, “mesmo que em graus variados ao longo dos últimos meses, ambos vem defendendo a falsa ideia de que a defesa da saúde da população seria incompatível com a defesa da saúde econômica da sociedade”, afirma o professor Felipe Loureiro.

Por Marilza de Melo Foucher - de Paris

O alinhamento automático à ultradireita norte-americana, sob a liderança do presidente Donald Trump (Republicano), tende a levar o Brasil a uma linha de ruptura com seus maiores parceiros econômicos, principalmente a China, “em contraponto com interesses e estratégias globalistas, supostamente orquestradas por uma conspiração comunista internacional”, afirmou o historiador Felipe Loureiro, professor do Instituto de Relações internacionais da USP e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU).

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O professor Felipe Loureiro avalia o risco de um alinhamento automático aos EUA, conforme vem ocorrendo no governo de Jair Bolsonaro (sem partido)

Diante o crescimento do discurso ultranacionalista, no Brasil, aumentam os riscos de o país se isolar mais ainda, no conjunto das nações, em meio a uma pandemia que se agrava sem uma resposta efetiva do governo de Jair Bolsonaro (sem partido). Tanto Trump quanto Bolsonaro, “mesmo que em graus variados ao longo dos últimos meses, ambos vem defendendo a falsa ideia de que a defesa da saúde da população seria incompatível com a defesa da saúde econômica da sociedade”, acrescenta Loureiro.

— O governo brasileiro tem mantido um alinhamento automático e unilateral aos Estados Unidos. O senhor poderia nos explicar esta nova diplomacia?

— Menos do que um alinhamento aos Estados Unidos, o governo Bolsonaro possui um alinhamento com a administração Trump e com a Nova Direita norte-americana, cuja maior expressão é o trumpismo. O alinhamento incondicional de Bolsonaro a Trump vai de encontro a interesses de setores econômicos, sociais e políticos do país, representando uma profunda ideologização da política externa brasileira. O bolsonarismo identifica no trumpismo uma espécie de guardião do Estado-Nação no século XXI, em contraponto com interesses e estratégias globalistas, supostamente orquestradas por uma conspiração comunista internacional. Essa conspiração, de acordo com essa perspectiva, estaria se utilizando de uma complexa rede de apoio, envolvendo desde organismos internacionais, vistos como dominados pela China, a conexões que perpassariam empresários, universidades e imprensa, para destruir as bases da identidade nacional – no caso brasileiro, a religião cristã e a família patriarcal monogâmica e heteronormativa.

Submeter-se aos Estados Unidos de Trump, portanto, representa para esse ultranacionalismo bolsonarista não uma profunda contradição, mas, surpreendentemente, uma forma de salvar a nação brasileira dessa conspiração comunista globalista, mesmo à custa de interesses materiais e estratégicos nacionais, como a perda de mercados com parceiros importantes (China e países árabes, por exemplo), o solapamento de instituições multilaterais (que têm uma importância enorme para que países como o Brasil possam formar coalizões e conter ações unilaterais de grandes potências) e o desmantelamento da história de institucionalização das relações do Brasil com seus vizinhos sul-americanos, especialmente no caso do Mercado Comum do Sul (Mercosul).     

— Como avaliar as posições de Bolsonaro e Trump, diante a pandemia?

— As abordagens de Trump e Bolsonaro diante da pandemia têm sido muito semelhantes. Mesmo que em graus variados ao longo dos últimos meses, ambos vem defendendo a falsa ideia de que a defesa da saúde da população seria incompatível com a defesa da saúde econômica da sociedade. Em outros termos, ambos argumentam, contrapondo-se às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da comunidade científica global, que os danos econômicos ocasionados pelas medidas de isolamento social – quando estas se fazem necessárias, a fim de impedir o colapso dos sistemas de saúde – seriam mais prejudiciais à população do que os próprios efeitos da pandemia em mortos e infectados, tendo em vista a crise econômica que acompanha as ações de isolamento.

Essa postura levou Trump e Bolsonaro a se apresentarem como paladinos das liberdades civis dos cidadãos, defendendo o direito de ir e vir, de produzir e de trabalhar das pessoas, o que gerou e vêm ainda gerando enormes conflitos com autoridades políticas locais e regionais, notadamente com governadores de Estados, e com lideranças de órgãos técnicos e científicos da área da saúde. Em suma, Trump e Bolsonaro pressionam por um retorno forçado à normalidade econômica, colocando o direito à vida dos cidadãos em segundo plano, e deixando de considerar algo que vários economistas vêm reiterando há meses: a crise econômica da pandemia não acabará por meio de decretos.

Não será com o fim das medidas de isolamento social que, do dia para a noite, as atividades econômicas retomarão ao patamar pré-pandemia. Isso porque as pessoas precisam se sentir seguras para voltar a consumir itens e serviços presencialmente – algo que, como técnicos e cientistas da área da saúde não se cansam de salientar, necessita de estratégias de testagem em massa, sistemas de identificação e isolamento de novos infectados, e estrutura capaz no sistema de saúde para tratar novos casos, coisa que tanto Trump quanto Bolsonaro ignoram.

— Quais os impactos políticos e econômicos, face a tais posições?

— Os impactos econômicos dessas abordagens de Trump e Bolsonaro tendem a ser maiores nos médio e longo prazos. Isso porque uma reabertura da economia sem condições para tal, como alguns Estados norte-americanos vêm fazendo, e como Bolsonaro vem pressionando para se fazer no Brasil, muito provavelmente gerará novos picos de contaminação, os quais, por sua vez, ou forçarão as autoridades a decretar novas quarentenas, ou levarão as pessoas a evitar sair às ruas por conta própria – o que, em ambos os casos, trará efeitos duradouros sobre a atividade econômica. Em outras palavras, ao invés de se realizar uma quarentena efetiva, abrindo-se a economia de modo controlado, apenas quando as condições estiverem maduras para tal, e dando, com isso, segurança às pessoas para retomar suas atividades cotidianas, corre-se o risco de se criar uma situação de aberturas e fechamentos contínuos até que surja um remédio ou vacina contra a doença, produzindo efeitos sobre a economia mais severos no longo prazo.

Em termos políticos, tende-se a ver uma queda de popularidade de Trump e Bolsonaro, algo que já se verifica nas últimas pesquisas de opinião divulgadas tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, acompanhado, porém, de uma radicalização das bases eleitorais fiéis do trumpismo e do bolsonarismo, que passam a enxergar autoridades e cidadãos que defendem a manutenção de medidas de isolamento social como verdadeiros inimigos da nação. Argumenta-se, coerentemente com as teorias conspiratórias que caracterizam esses setores de extrema direita nos EUA e no Brasil, que grupos pró-isolamento estariam apenas se utilizando da pandemia para desestabilizar os governos Trump e Bolsonaro, instaurando caos e desespero na sociedade por meio de uma crise econômica.

— O governo Trump tem tentado desestabilizar a economia chinesa e com a covid-19, a China virou um alvo de ataques permanentes. Bolsonaro tem seguido a mesma lógica. Quais as consequência para as economias norte-americana e brasileira?

— Ainda é difícil dizer se a escalada de tensões entre China e EUA desembocará em uma dissociação econômico-financeira entre os dois países no médio prazo. Se isso ocorrer, o impacto será significativo não apenas para a economia norte-americana, mas para a própria economia global, uma vez que China e EUA têm economias profundamente integradas entre si. O governo Trump sabe disso e imagino que, especialmente em se tratando de um ano eleitoral nos EUA, a tendência é que os ataques norte-americanos fiquem mais no plano retórico do que no plano das ações, mesmo que algumas medidas concretas possam ser aplicadas, como, de fato, já o foram. Vide, por exemplo, a bombástica saída dos EUA da Organização Mundial da Saúde, acusada, pelo governo Trump, de estar sob controle da China.

No caso do Brasil, para além dos efeitos econômicos que o país sofreria na hipótese de uma crescente confrontação China-EUA no sistema internacional, há o fato de o Brasil ter na China seu principal parceiro comercial (exportações e importações), além de Pequim ser uma importante fonte de investimentos. A manutenção dessa posição ideológica radical do governo Bolsonaro, mantendo-se em alinhamento automático com o governo Trump, poderá trazer efeitos econômicos severos para o Brasil, especialmente em termos de perda de mercados e investimentos, e em particular se EUA e China intensificarem conflitos no plano global, forçando o Brasil, por exemplo, a fazer algo que não lhe cabe, que é o de escolher um lado nessa disputa.

— Por último, o assassinado de George Floyd demonstra que o racismo estrutural parece ser enraizado em grande parte na polícia nacional norte-americana. Entretanto a sociedade civil organizada demonstra que os jovens americanos negros e brancos se mobilizam no combate ao racismo contra a população negra. Existe possibilidade de tais protestos impactar a reeleição de Trump? 

— Sem dúvida, apesar de ainda ser necessário observar como a conjuntura se desenvolverá nos Estados Unidos nos próximos meses. Vejo dois cenários possíveis: o primeiro, que é o que parece estar se desenvolvendo, é o de um crescente isolamento de Trump junto a setores moderados da sociedade norte-americana, e que, se acompanhado de uma energização eleitoral de minorias (negros e latinos, principalmente), tenderá a derrotar Trump nas eleições de novembro. A energização de minorias, incentivando-as a votar em massa nos democratas em novembro, dependerá, porém, que a campanha presidencial democrata de Joseph Biden incorpore demandas históricas do movimento negro norte-americano em sua plataforma de governo, como a questão do controle da brutalidade policial e da penalização de policiais envolvidos em casos de violência contra cidadãos. A escolha por Biden de uma candidata negra para compor sua chapa à presidência na qualidade de vice-presidente, como a senadora da California Kamala Harris, ou a ex-canddiata ao governo da Georgia, Stacey Abrams, por exemplo, também me parece importante a fim de mobilizar os negros na campanha.

O segundo cenário, que me parece menos provável no momento, mas que não pode ser descartado de forma alguma, é o de se fortalecer a narrativa alarmista do trumpismo de que a sociedade norte-americana precisaria de alguém firme e forte para garantir o respeito “à lei e à ordem” diante do caos e vandalismo perpetrado por grupos da extrema esquerda – grupos esses que, segundo Trump, amplificado pelo complexo midiático neoconservador, especialmente pela Fox News – estariam sendo incentivados pelos próprios democratas a criar o caos e a desordem na sociedade, prejudicando o governo Trump e, com isso, viabilizando o retorno dos democratas à presidência em novembro. É preciso analisar as próximas pesquisas de opinião para verificar se essa narrativa ganhará penetração no eleitorado. Mas, ao que parece, a postura “dura e firme” de Trump, pregando o uso do exército para conter manifestantes, inclusive contra manifestações pacíficas, como aconteceu em Washington no último dia 1 de junho, tenderá a fortalecer a percepção na sociedade norte-americana de um presidente insensível às dificuldades e aos sofrimentos dos cidadãos, semelhante à postura do presidente ao lidar com a crise da pandemia de Covid-19.

Marilza de Melo Foucher é economista, jornalista e correspondente do Correio do Brasil, em Paris.

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