Da mente do seu autor até ser apreendida pela Polícia Federal (PF), qual foi a rota seguida pela minuta do golpe no Palácio do Planalto? Essa é uma história que a imprensa está devendo para os seus leitores. Ela tem sido publicada aos pedaços nos noticiários. Mas alguém vai ter que unir os pontos, investigar as lacunas entre os fatos e fazer uma grande reportagem, que pode virar um bom livro. Saber essa rota é fundamental para se entender as entranhas da tentativa de golpe de 8 de janeiro, quando bolsonaristas radicalizados invadiram e vandalizaram os prédios do Congresso, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal (STF), na Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF).
Por Carlos Wagner
O objetivo era criar o caos para forçar o presidente recém-empossado, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a decretar estado de emergência e chamar as Forças Armadas, abrindo, com isso, caminho para a volta à Presidência de Jair Bolsonaro (PL), que foi derrotado nas urnas na sua tentativa de reeleição. Como conta a história, a tentativa de golpe foi um tiro que saiu pela culatra. Mais de 1,5 mil pessoas foram presas, incluindo oficiais da Polícia Militar e das Forças Armadas – há matérias na internet.
Nos dias seguintes ao 8 de janeiro, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, decretou a prisão preventiva do delegado da PF Anderson Torres, ex-ministro da Justiça do governo Bolsonaro e posteriormente secretário da Segurança do Distrito Federal.
Foi durante o cumprimento de um mandado de busca e apreensão da casa de Torres que os agentes da PF encontraram a minuta do golpe, como foi apelidado pela imprensa o esqueleto de um decreto-lei chamado Estado de Defesa e Intervenção no Tribunal Superior Eleitoral, para reintroduzir a ordem pública e a paz social. Torres, em depoimento à PF, e Valdemar da Costa Neto, presidente do PL, partido de Bolsonaro, disseram que a minuta do golpe já circulava havia bastante tempo entre os bolsonaristas e a definiram como sendo sem importância.
Os policiais investigaram as impressões digitais no documento e não encontraram novidades. Agora estão investigando rastros de DNA presentes na minuta. Mas é quase impossível achar uma digital ou DNA que facilite a descoberta da rota que o documento percorreu, e muito menos quem foi o seu autor intelectual.
Ouvi de uma fonte uma história interessante. Disse que cada operador do direito tem um estilo muito pessoal de redigir os seus textos e também uma visão muito particular de interpretação das leis. Seguindo essa linha de pensamento, digo, com todo respeito aos advogados de porta de cadeia, que a minuta do golpe não foi redigida por um deles. Por exigir um conhecimento muito aprofundado do direito constitucional.
Cheguei a essa conclusão depois de conversar com várias fontes sobre o assunto, incluindo juízes federais e desembargadores que conheci na década de 90, respeitados por seus colegas e jornalistas como pessoas de grande conhecimento jurídico.
Portanto, a pista para chegar ao autor intelectual da minuta do golpe e a rota que ele seguiu dentro do governo não está nem nas digitais e muito menos nos rastros de DNA eventualmente encontrados no documento. Está na maneira como foi redigido o texto e na interpretação dada para a lei.
Durante todo o seu governo, Bolsonaro sempre esteve cercado de juristas que davam a sua opinião a cada tentativa de golpe. Temos muitas e interessantes matérias publicadas, como a da repórter Monica Gugliano, da revista Piauí, em agosto de 2020, com título “Vou intervir!”, que conta a história do dia em que Bolsonaro decidiu que iria mandar as Forças Armadas destituírem os ministros do STF porque um deles, Celso de Mello, consultara a Procuradoria-Geral da República (PGR) para saber se mandava apreender os celulares do presidente da República e do seu filho Carlos, vereador do Rio de Janeiro, para investigar uma notícia-crime contra eles feita por três partidos.
Vários juristas, ministros generais e o então titular do Ministério da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, foram ouvidos pelo presidente sobre a sua intenção de destituir os ministro do STF. No final, ele desistiu da ideia.
Lembro que durante os quatro anos do governo do ex-presidente houve um debate constante e acalorado entre os juristas sobre a história das Forças Armadas serem a guardiã da paz entre os poderes. Ficou claro no final do debate que a Constituição não determina a função de guardiões aos militares. Aqui, chamo a atenção dos meus colegas repórteres para o seguinte.
Tem sido uma tática do movimento bolsonarista espalhar a sua versão como se fosse a única verdade sobre os debates a respeito da Constituição. Lembram da expressão do ex-presidente: “Jogo dentro das quatro linhas da Constituição”. É assim que eles mobilizam as suas redes sociais. A minuta do golpe se enquadra dentro desse perfil.
A minuta complicou bastante a vida de Torres, o ex-ministro da Justiça. Existe entre os comentaristas políticos um comentário de que ele poderia fazer delação premiada e que os líderes bolsonaristas temem que isso aconteça. Tenho as minhas dúvidas de que isso aconteça por uma série de motivos, vou citar dois que considero importantes.
O primeiro é que a deleção premiada foi desmoralizada pelo então juiz Sergio Moro (hoje senador), da Operação Lava Jato – muitas matérias sobre o assunto no site The Intercept Brasil. O segundo motivo é que Torres pode ter decidido que sua melhor chance de sair da enrascada em que se meteu é negociando com seguidores do movimento bolsonarista que ocupam importantes posições dentro dos poderes da República. Torres é delegado federal e sabe quem é quem e onde estão os apoiadores do ex-presidente
Texto publicado originalmente em Histórias Mal Contadas
Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.