Rio de Janeiro, 30 de Outubro de 2024

Recatado e do lar: o drama dos abusos infantis no Brasil

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Quarta, 31 de Julho de 2024 às 09:37, por: CdB

A principal forma de combater o abuso infantil não se dá no âmbito individual. Precisamos de toda a sociedade empenhada nessa luta.

Por Gisele Vieira – de São Paulo

No ano de 2023, ao menos 45 mil crianças foram vítimas de estupro, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O suficiente para lotar um estádio de futebol, como o Pacaembu.

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“As pessoas preferem desacreditar nas mães do que se deparar com o horror do abuso sexual”, afirma advogada

O abuso sexual é uma violência grave, capaz de repercutir por toda a vida. Pode acontecer de formas mais ou menos sutis, com ou sem contato físico. Em mais de 80% dos casos, o abusador é um familiar ou conhecido, o que aumenta o tabu em torno do assunto. Para piorar, quando conseguem denunciar, muitas vítimas são desacreditadas.

Também não faltam exemplos de meninas obrigadas a levar adiante gestações originadas de estupros adiante, bem como de juristas que as obrigam a conviver com os violadores) A lista de horrores não para.

Como pediatra e feminista, sinto a obrigação de jogar luz sobre esse tema. Durante o Maio Laranja, mês que visibiliza a questão, recebi muitas dúvidas genuínas de alguns seguidores nas redes sociais. Por exemplo, devo notificar a suspeita antes da confirmação?

A resposta é: sim, por lei (e para sua proteção) você deve notificar. O Código Penal descreve o crime de omissão no artigo 135: deixar de prestar assistência ou socorro a uma pessoa vulnerável pode levar à punição com seis meses de prisão ou multa. E a pena pode ser aumentada conforme a gravidade do caso. A notificação geralmente é feita no Conselho Tutelar ou através do Disque 100. Quando há risco imediato, via 190, da Polícia Militar. Para pedidos de socorro urgentes devem ser direcionados ao 192, via Samu.

Culpabilizar os cuidadores

E devo frisar: não se trata de culpabilizar os cuidadores, pois eles também não receberam a instrução adequada. Sem as ferramentas necessárias para orientar, muitas vezes não reconhecem o problema quando ele surge. A forma como nossa rotina está organizada, com jornadas de trabalho longas e dificuldades de acesso a direitos básicos, prejudica tanto adultos quanto crianças, tornando-os vulneráveis a abusos e outras formas de violência. Aliás, em um país onde a cultura do estupro é validada como pauta política da direita conservadora, estamos todos vulneráveis.

Mais do que nunca, é preciso afirmar: oferecer educação sexual para crianças e, consequentemente, para suas famílias é indispensável. E vale repetir o óbvio: não se trata de ensinar sobre sexo para crianças. Frequentemente, me pedem recomendações de livros sobre educação sexual. Há excelentes exemplares disponíveis nas livrarias, como a coleção Pipo e Fifi de Caroline Arcari, Não Me Toca, Seu Boboca de Andrea Viviana Taubman, e Meu Corpo, Meu Corpinho de Roseli Mendonça.

A principal forma de combater o abuso infantil, contudo, não se dá no âmbito individual. Precisamos de toda a sociedade empenhada nessa luta, especialmente as escolas, onde as crianças passam grande parte do tempo. Nas crianças, a sexualidade está relacionada à afetividade e ao desenvolvimento emocional, e é essa a base da orientação que devem receber. Assim, elas aprendem os nomes das partes do corpo (incluindo as íntimas) e entendem que são importantes eque devem ser cuidadas. A educação sexual também ensina sobre emoções e limites no contato com o outro, além de influenciar como o indivíduo vai se relacionar ao longo da vida. É um ponto de apoio crucial para abordarmos não apenas abusos, mas também cuidados e ensinamentos sobre a consciência corporal infantil.

Além da exposição na internet e das cobranças e responsabilidades desproporcionais para a idade, o que mais adultiza e erotiza as crianças são as reproduções sociais sobre como meninos e meninas devem se comportar,. Por isso, o combate ao abuso sexual também passa por não reproduzir uma educação machista, que ensina meninos a serem violentos e viris e meninas a serem belas e recatadas. A prevenção consiste, assim, em educar as crianças, para que se protejam e para que não se tornem abusadores.

Esforços coletivos

Os esforços coletivos devem ser direcionados à luta pela formação de profissionais capacitados em oferecer educação sexual, à criação de espaços de conversa para os cuidadores e familiares e ao combate ao machismo. Além disso, é preciso formar juristas para proteger, em vez de revitimizar, as crianças que precisam de ajuda. Devemos também investir em campanhas de conscientização que desmistifiquem a educação sexual e promovam um entendimento correto sobre seu papel na proteção das crianças.

É necessário que a conscientização sobre o combate ao abuso seja vista como responsabilidade coletiva, abrangendo todas as esferas da sociedade, para que possamos criar um ambiente seguro e saudável para nossas crianças.

 

Gisele Vieira, é pediatra e infectologista infantil (@giselevieira_pediatra) na Casa Caeté (@casa.caete), em São Paulo.

As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil

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