Uma desbozificação pela metade (sem a punição exemplar dos mandantes e nem mesmo a desmilitarização do policiamento urbano) nos deixará expostos a recaídas, assim como a anistia pela metade de 1979 permitiu que a doença recrudescesse na década passada.
Por Celso Lungaretti
O lúcido Hélio Schwartsman acaba de ressaltar que o golpismo está no DNA das famílias dos militares:
"...não são poucos os militares de hoje com pai, tios ou avós que também foram militares e serviram nos anos 1960 e 1970.O problema desse elemento dinástico é que ele vem dificultando que as Forças Armadas reconheçam que cometeram crimes na ditadura. Os atuais soldados não querem ver seus parentes como autores de delitos contra a humanidade. Preferem ver vovô e titio como heróis que combateram o comunismo.Nosso erro foi não ter levado a uma justiça de transição os responsáveis pelas torturas assim que reconquistamos a democracia".
Não há nada de novo nisto, mas é um assunto que anda um pouco sumido das análises esquerdistas nestes tempos de rendição incondicional ao reformismo petista.
E permito-me lembrar ao Schwartsman que, se os responsáveis pelas atrocidades ditatoriais deveriam mesmo ter começado a responder por elas desde 1985, não foi então que se perdeu a última grande oportunidade para tanto.
Foi em 2010, quando se discutia a proposta de 3ª versão do Programa Nacional dos Direitos Humanos, a qual incluía a revogação da anistia que os torturadores haviam concedido a si próprios em 1979, quando o arbítrio ainda estava em plena vigência.
Quem encabeçou o contra-ataque direitista foi o então ministro da Defesa Nelson Jobim, ao exigir que se investigassem também crimes atribuídos àqueles que exerceram o direito milenar de resistência à tirania. Ou seja, ele propôs que os crimes cometidos pelos tiranos como política de estado fossem equiparados a um ou outro excesso praticado pelos que resistiram aos tiranos.
Lula decidiu que fosse simplesmente suprimida do PNDH-3 a menção aos torturadores, determinando, ainda, ao ministro da Justiça Tarso Genro e ao secretário especial de Direitos Humanos Paulo Vannuchi que, dali em diante, não envolvessem mais o Executivo na questão e apontassem aos torturados sobreviventes e às famílias dos exterminados o caminho dos tribunais.
Como veterano da resistência à ditadura, eu vinha lutando desde 2007 para que as bestialidades cometidas nos porões fossem apuradas. Naquele ano o Alto Comando do Exército questionou o entendimento da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e dos ministros de Lula em nota oficial, afirmando que havia outras visões possíveis daqueles acontecimentos além daquela que o governo assumira. O episódio acabou em pizza.
O comandante supremo das Forças Armadas amarelou; caso houvesse exonerado imediatamente os signatários da nota insubmissa, provavelmente não teria ocorrido o 8 de janeiro de 2023.
Na nova refrega, em 2010, de imediato antecipei que, após o governo federal ter lavado as mãos, nenhum torturador cumpriria pena de prisão, pois as instâncias superiores do Judiciário seriam impedidas pela Lei de Anistia de fazerem justiça.
E foi exatamente o que aconteceu. A vigência da anistia de 1979 se revelou um obstáculo intransponível e, sem o empenho do governo em anular o dispositivo que garantia impunidade eterna para os carrascos, o Congresso também fez de conta que a encrenca não era com ele.
Terá Lula resolvido agora deixar de passar pano no fulcro da questão? Ou vai apenas aproveitar o putsch flopado das incríveis falanges Bozoleone para, enfraquecendo-a momentaneamente, evitar que a extrema-direita continue mordendo seus calcanhares?
Uma desbozificação pela metade (sem a punição exemplar dos mandantes e nem mesmo a desmilitarização do policiamento urbano) nos deixará expostos a recaídas, assim como a anistia pela metade de 1979 permitiu que a doença recrudescesse na década passada.
Enquanto não acertarmos nossas contas com a História, o pesadelo poderá ressurgir. (por Celso Lungaretti - Publicado originalmente no blog Náufrago da Utopia)
Direto da Redação é um fórum de debates publicado no jornal Correio do Brasil pelo jornalista Rui Martins.