O BC é responsável pela movimentação cotidiana da soma existente na chamada Conta Única do Tesouro, que apresenta o “modesto” saldo de R$ 1,8 trilhão de acordo com o último balanço divulgado pela autoridade monetária.
Por Paulo Kliass – de Brasília
Não existem muitas dúvidas de que a economia e a sociedade brasileiras sempre foram consideradas como o paraíso para o sistema financeiro. Seja para os operadores do oligopólio privado da banca que atuam aqui dentro do País, seja para as empresas e para os conglomerados do universo financeiro global. O fato é que são poucas as nações no mundo que oferecem a essa camada de hiper privilegiados um tratamento assim tão generoso e benevolente. A esfera da política monetária é um dos espaços de maior predileção desse povo. Ali sempre estiveram acostumados a nadar de braçadas, sem nenhum tipo de pudor por se apropriar de forma escandalosa e inescrupulosa dos recursos do conjunto da sociedade.
A criação do Banco Central ocorreu exatamente 9 meses após o golpe militar de 1964. No dia 31 de dezembro daquele ano, foi aprovada a Lei nº 4.595 , que estabelecia as regras e as definições do sistema monetário, creditício e financeiro. A nova legislação criava novas figuras jurídicas e institucionais bem importantes, a exemplo do Conselho Monetário Nacional e o Banco Central (BC). A sincronicidade histórica é que o texto, à época, vinha assinado pelo então Ministro do Planejamento do governo dos generais golpistas, o economista Roberto Campos. Pois agora, quase 6 décadas mais tarde, seu neto é o atual Presidente do BC e o pupilo pretende implementar uma reforma ainda mais profunda do que aquela que seu avô realizou.
A inovação proporcionada pela proposta do avô de Roberto Campos Neto criou o BC como autarquia federal, subordinada ao Ministério da Fazenda. Seus diretores seriam escolhidos dentre os integrantes do Conselho Monetário Nacional (CMN), todos eles nomeados pelo Presidente da República. O novo órgão substituiria a antiga Superintendência da Moeda e do Crédito (a “poderosa” SUMOC, vinculada ao Banco do Brasil), órgão federal que cumpria até então com as funções de gestão das contas públicas (que viria a ser posteriormente o Tesouro Nacional) e também com a missão de autoridade monetária.
Histórico do BC: autonomia relativa
Em 1988, como coroamento do processo de superação da ditadura militar e do entulho autoritário, a Constituição Federal determinou que o presidente e os diretores do BC deveriam ser sabatinados e aprovados pelo Senado Federal, em etapa prévia à nomeação dos mesmos pelo Presidente da República para tais funções. Porém, o dispositivo mantinha a noção republicana de que a legitimidade para a condução da política monetária deveria ser resguardada junto ao Chefe do Executivo, escolhido pela população para o seu mandato à frente do governo federal.
Apesar de toda essa evolução jurídico-institucional, o fato concreto é que o BC esteve quase o tempo todo de sua existência atendendo aos interesses da banca privada. Em alguns momentos, o Presidente era um banqueiro de fato. Em outros, sua direção era composta de representantes da nata do financismo ou por profissionais absolutamente comprometidos com a defesa dos interesses do sistema financeiro. Um dos casos mais emblemáticos foi a gestão de Henrique Meirelles à frente do órgão. Ex presidente internacional do Bank of Boston, um dos maiores credores da dívida externa brasileira, ele havia sido eleito deputado federal pelo PSDB em 2002. Pois o banqueiro recém aposentado, abriu mão do mandato legislativo para ser presidente do BC nomeado por Lula. Para tanto, exigiu uma importante mudança no ordenamento institucional e Lula preparou uma Medida Provisória para atender a tal demanda. O receio de Meirelles era ser preso, como havia ocorrido com alguns dirigentes do BC no passado. Assim, o cargo passou a ser equiparado ao de Ministro de Estado, para ter direito ao foro privilegiado na Justiça. Mas isso criou um monstrengo jurídico, pois tratava-se de um Ministro de Estado subordinado a outro Ministro, no caso o da Fazenda.
Bolsonaro, Guedes e Campos Neto: quase independência
Durante o mandato de Bolsonaro e Paulo Guedes, o financismo logrou um outro “avanço” no processo de conferir uma quase independência do BC. O governo da época apoiou e o Congresso Nacional aprovou a Lei Complementar nº 179/2021. Pela medida, os dirigentes da instituição passariam a contar com um mandato fixo de 4 anos, em condições de quase inamovibilidade. Assim, as regras da democracia representativa e os princípios do republicanismo foram para o espaço. Na verdade, era uma preparação do sistema financeiro para um eventual retorno de Lula ao governo. Pela nova lei, os nove integrantes da diretoria indicados por Bolsonaro não puderam ser substituídos por Lula. Apesar da legitimidade política e eleitoral conferida pelas urnas, um componente fundamental da política econômica continuou em mãos de bolsonaristas, ortodoxos e neoliberais vinculado à banca privada.
Os dispositivos da quase independência reduziram bastante a capacidade de Lula definir a política monetária. O novo Presidente da República só terá conseguido indicar a maioria dos membros do banco no final de dezembro próximo, quando termina o mandato de Roberto Campos Neto. Uma loucura! A direção do BC pratica uma verdadeira chantagem contra as promessas do novo governo quanto à retomada da trilha do desenvolvimento e do apoio ao setor real da economia. A Selic muito elevada e as taxas reais de juros nas alturas seguem inviabilizando o empreendimento gerador de produção, renda e de emprego. O Brasil permanece como o paraíso do parasitismo financista.
PEC 65 e a independência plena
No entanto, ainda assim, o oligopólio da banca privada não se dá por satisfeito. Sempre quer mais, e mais, e mais. Agora, prepararam uma alteração na Constituição. Foi elaborada a PEC 65/2023, que tem por objetivo estabelecer no texto constitucional a efetiva independência do BC. O texto foi elaborado por encomenda do financismo, mas foi protocolado oficialmente por 42 integrantes do Senado Federal. Ou seja, mais de 50% dos 81 parlamentares da câmara alta se apresentaram como participantes de uma chamada “autoria coletiva”. O trabalho de lobby foi muito bem feito e a lista contém nomes que vão desde a extrema direita (Flávio Bolsonaro, Damares Alves, Marcos Pontes, Hamilton Mourão e Sérgio Moro, por exemplo) até outros ligados ao MDB e até o PSB.
A matéria acrescenta novos parágrafos ao art. 164 da Constituição, que trata da ordem monetária. A intenção é converter o BC em um espaço do Estado que seja de fato independente do Executivo e fora do controle do Legislativo e do Judiciário. Uma jaboticaba de usufruto exclusivo do capital financeiro.
(…) “Art. 164.
§ 4º O Banco Central é instituição de natureza especial com autonomia técnica, operacional, administrativa, orçamentária e financeira, organizada sob a forma de empresa pública e dotada de poder de polícia, incluindo poderes de regulação, supervisão e resolução, na forma da lei.
§ 5º A vedação do inciso VI, “a”, do art. 150 é extensiva ao Banco Central, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes.
§ 6º Lei complementar, cuja iniciativa observará o disposto no caput do art. 61, disporá sobre os objetivos, a estrutura e a organização do Banco Central, asseguradas:
I – a autonomia de gestão administrativa, contábil, orçamentária, financeira, operacional e patrimonial, sob supervisão do Congresso Nacional;
II – a ausência de vinculação a Ministério ou a qualquer órgão da Administração Pública e de tutela ou subordinação hierárquica.
§ 7º A fiscalização contábil, orçamentária, financeira, operacional e patrimonial do Banco Central, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, com o auxílio do Tribunal de Contas da União, e pelo sistema de controle interno do Banco Central.
§ 8º A lei disporá sobre o relacionamento financeiro entre o Banco Central e a União.” (…) [GN]
Caso o texto seja aprovado, estaremos diante de uma situação inusitada. A alta direção do BC, em completa e estreita articulação com a nata da finança privada terá ao seu dispor o manuseio de valores trilionários do setor público brasileiro. No entanto, ao contrário do desenho institucional que vige atualmente, essa tecnocracia a serviço do grande capital do parasitismo não deverá prestar contas a praticamente ninguém do destino que fizer de tais valores. Se no modelo criado por Guedes da quase independência a transparência é rarefeita, imaginemos o que poderá ocorrer com a independência plena proposta pela PEC 65.
Vários trilhões de R$ sem controle e ao dispor do financismo
Afinal, o BC é responsável pela movimentação cotidiana da soma existente na chamada Conta Única do Tesouro, que apresenta o “modesto” saldo de R$ 1,8 trilhão de acordo com o último balanço divulgado pela autoridade monetária. Ou seja, ficaria ainda mais sem controle da sociedade algo próximo a 18% do PIB de nosso País. Além disso, o BC é responsável pela gestão e movimentação das Reservas Internacionais, que fecharam o mês de janeiro no saldo de US$ 355 bilhões. Esses valores representam também algo próximo a mais 18% de nosso Produto Interno. Finalmente, é sempre bom lembrar que o BC tem por incumbência a implementação das políticas associadas ao pagamento de despesas financeiras da dívida pública. Assim, devemos somar os R$ 720 bi que foram pagos a esse título ao longo do ano passado.
Com todas as características da independência elencadas na PEC, sem nenhum ministério de tutela a quem deveria prestar contas e estar subordinado hierarquicamente, e ainda contando com o incompreensível “poder de polícia”, o BC seria apenas controlado de forma genérica pelo Congresso Nacional. Na verdade, conhecendo um pouco a história desse tipo de mecanismo, pode-se imaginar que o modelo da nova institucionalidade será o universo da ausência de controle.
Lula precisa avisar que o governo é contra a PEC 65
O processo ainda está em seu início. A tramitação no Senado conta apenas com a nomeação do Relator no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça. Mas o governo precisa urgentemente se manifestar para que não paire a menor sombra de dúvida quanto aos prejuízos presentes na matéria para o conjunto da sociedade. O Ministro da Fazenda tem evitado se pronunciar publicamente a esse respeito, mas é sabido que tem participado intensamente de articulações com RCN para viabilizar o texto. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, tem denunciado a medida, alertando para os risco de se estabelecer uma “ditadura monetária” no Brasil.
O Presidente Lula deveria esclarecer de forma urgente que seu governo não tem nada a ver com a essência da PEC 65 e que os parlamentares da base aliada não deveriam colaborar com o financismo em sua tramitação.
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
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