Uma parte da esquerda francesa se pergunta por que alguns líderes como Mélenchon apoiam o Irã, que não é nenhum exemplo a seguir. Essa atração pelo Irã vem da época da revolução do aiatolá Khomeini, em 1979, contra a monarquia do Xá Rheza Pahlevi. E um dos líderes pensantes e influentes da esquerda dessa época, Michel Foucault não escondia sua admiração por Khomeini.
Por Rui Martins, editor do direto da Redação
Sartre e Foucault ajudaram a criar o mito do Irã anti-imperialistaDepois da entrevista coletiva para a imprensa internacional, me coloquei no caminho da saída do entrevistado e à sua passagem lhe estendi a mão, me identificando em francês: “sou jornalista do Brasil, tenho seguido seus filmes e suas denúncias. Espero que seja bem acolhido no país no qual vai viver seu exílio”.
Houve um forte aperto de mãos. Enquanto eu fixava seu rosto ele me sorria, ouvindo a tradutora lhe transmitir em persa meu recado. Talvez lhe tenha parecido original a preocupação do jornalista com a acolha no lugar onde vai viver, mas isso é próprio de quem já viveu o exílio.
Foram apenas alguns segundos, revividos por mim nestes dias em que as manchetes dos noticiários falam do Irã. O entrevistado era Mohammad Rasoulof, cujo filme As Sementes do Figo Sagrado tinha recebido o Prêmio Especial do Júri no Festival de Cinema de Cannes e foi exibido no telão de 400m2 da Piazza Grande, no Festival suíço de Locarno.
O cinema é também uma maneira de se contar um país. Isso, nós brasileiros vivemos, durante a ditadura militar. Naquela época, em praticamente todos os festivais no exterior, o cinema brasileiro aparecia e dava sua mensagem denunciando a ditadura e os crimes cometidos pelos militares. Existe mesmo um ótimo texto do cineasta Thiago B. Mendonça sobre esse período de censura e controle, com o título A ditadura e o cinema brasileiro, ilustrado com uma conhecida foto do filme Terra em Transe, de Glauber Rocha.
Retornando ao Irã, existe um texto mais antigo, de Natalia Barrenha, que trata do redescobrimento do cinema iraniano, há vinte anos, mas já começando a se defrontar com o problema do fundamentalismo da teocracia islâmica
. Talvez seja instrutivo agora, sob os clarões das explosões dos mísseis iranianos lançados sobre Israel, contar a história do filme de Rasoulof.
Mesmo porque existe a preocupação de alguns setores em mostrar aos brasileiros frequentadores de redes sociais só a visão positiva do Irã, quase uma propaganda, mesmo na questão dos direitos humanos em geral e, na questão da liberdade das mulheres, fazendo de conta ignorar que a teocracia iraniana, um tipo de ditadura religiosa, é também misógina ao extremo.
A curiosidade popular com relação à situação das mulheres iranianas surgiu depois do assassinato da jovem curda Mahsa Amina pela “polícia da moralidade”, em 2022, pelo “crime” de não ter o véu “chador” cobrindo a cabeça, exigido pela religião. Isso foi bastante divulgado pelas televisões brasileiras e, no Irã, provocou numerosas manifestações de mulheres e a criação do movimento “Mulher,Vida,Liberdade”. A repressão às mulheres foi violenta e o presidente da época Ibrahim Raisi aplicou a pena de morte na forca para muitas delas.
O filme de Rasoulof, que precisou fugir do Irã para não ser preso, conta a história de Iman, um jurista fiel e de dedicação servil à teocracia, que chegou ao ápice de sua carreira ao ser nomeado juiz do Tribunal Revolucionário de Teerã. Iman logo descobre que uma de suas funções é a de assinar as sentenças de morte, decididas pelo Tribunal. A situação se complica para Iman, quando sua filha mais velha, progressista, abriga em casa uma colega de escola ferida nas manifestações depois do assassinato da jovem Mahsa Amina.
O filme quer ser uma antecipação, pois aposta na revolta da família contra o marido e pai, em outras palavras, numa revolta popular contra a ditadura teocrática, mesmo porque o Irã vai mal economicamente e uma importante parcela da população não apoia o governo.
Uma parte da esquerda francesa se pergunta por que alguns líderes como Mélenchon apoiam o Irã, que não é nenhum exemplo a seguir. Essa atração pelo Irã vem da época da revolução do aiatolá Khomeini, em 1979, contra a monarquia do Xá Rheza Pahlevi. E um dos líderes pensantes e influentes da esquerda dessa época, Michel Foucault não escondia sua admiração por Khomeini. Enquanto Jean Daniel, diretor do semanário Le Nouvel Observateur, dava trânsito livre para Foucault na revista que funcionava como guia do pensamento da esquerda da época.
Jean-Paul Sartre também nutria admiração pelo aiatolá Khomeini, que viveu algum tempo perto de Paris, no município de Yvelines no Neauphle-le-Château, depois de um longo exílio no Iraque. Sartre acreditava que a queda do Xá daria origem a um regime anticolonialista e anti-imperialista. Na verdade, surgiu uma rigorosa teocracia xiita baseada na lei corânica da charia, incompatível com a observância dos direitos humanos no que se refere à liberdade de expressão, liberdade de crença, liberdade sexual e liberdade das mulheres.
Foucault chegou a criar a expressão “espiritualidade política”, depois de uma viagem ao Irã, para definir o islamismo do aiatolá Khomeini, embora lhe criticassem ignorar os perigos imanentes de um regime religioso islâmico. Em síntese, Foucault avalisou o regime de Khomeini, que se tornou uma ditadura islâmica, de tal forma que, mesmo hoje, com as interpretações sociológicas do pós-colonialismo, Sul Global e wokismo, o Irã se beneficia de uma certa proteção e apoio junto da esquerda.
É o caso do Brasil, onde o Sul Global e a presença do Irã no Brics têm levado a uma islamização da esquerda, reforçada depois da resposta israelense na Faixa de Gaza ao ataque do Hamas no 7 de outubro. A proibição por muitos países europeus, em nome do respeito à laicidade, de que crianças e jovens frequentem as aulas nas escolas públicas usando roupas religiosas que lhes cubram a cabeça, as pernas e o corpo, chegou a ser criticada e considerada islamofobia pela professora Francirosy Campos Barbosa. Na Bélgica, houve protestos semelhantes com a decisão governamental de tornar obrigatória a presença dos alunos do curso ginasial nas aulas de educação sexual.
As redes sociais de esquerda passaram o pano nos crimes do ex-presidente iraniano Ibrahim Raisi, chamado de “acougueiro”, acusado de condenar à morte oito mil pessoas. Na sua rede social dedicada principalmente à promoção e conhecimento do Irã, o professor Salem Nasser, da FGV, também ignorou a má reputação de Ibrahim Raisi e insinuou serem as leis iranianas melhores que as brasileiras em matéria de direitos humanos. Também não comentou a morte da jovem Mahasa Amina.
A campanha paralela contra o sionismo, por setores da esquerda, fez com que Israel, cujos primeiros kibutz eram de inspiração marxista, venha sendo abandonado em nome do colonialismo imperialista. O contraponto é estar havendo apoio a ditaduras e teocracias, cujas ideologias significam retrocesso inclusive em questões de direitos humanos, gênero, liberdade e paridade das mulheres com os homens.
Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.