Rio de Janeiro, 16 de Junho de 2025

Somos todos mestiços

Por Rui Martins - A historiadora usa mesmo de uma frase para isso: “no corpo da mulher escravizada se deu a colonização”. Como o Brasil foi dos últimos países a acabar com a escravidão, por pressão do agronegócio da época, o uso do corpo das mulheres negras e mestiças era normal na época.

Sábado, 31 de Maio de 2025 às 13:38, por: Rui Martins

A mestiçagem brasileira não é novidade. A novidade é o resultado de uma pesquisa científica indo bem além: o Brasil é o campeão do mundo em questão de mestiçagem, nenhum outro país reúne uma tal diversidade genética. Alguns países quiseram ou querem se afirmar como raça pura, quando a teoria da eugenia só tem servido para justificar práticas discriminatórias como a segregação racial e o genocídio.

Por Rui Martins, editor do Direto da Redação.
Somos todos mestiços | Apesar de mestiços, muitos brasileiros são também racistas.
Apesar de mestiços, muitos brasileiros são também racistas.

O Brasil de hoje, embora muitas de suas misturas tenham sido violentas e ainda continue a penalizar socialmente os afros e índios-descendentes, reúne uma diversidade genômica inexistente em nenhum outro país, composta de 8.721.871 variantes.

A cientista brasileira Kelly Nunes, responsável pelos trabalhos de 24 pesquisadores durante seis anos, destaca ser a primeira pesquisa feita de maneira detalhada sobre a identidade de um povo. E na publicação dos resultados na revista Science, ela acentua que “a história dos brasileiros se encontra no seu DNA”, ao comentar os resultados obtidos com o sequenciamento do material genético de 2.723 pessoas, vivendo nas diversas regiões brasileiras.

Para se entender a mestiçagem ocorrida no Brasil, é preciso lembrar a chegada de milhões de europeus desde o início da colonização, reforçada com a imigração europeia desde o fim do século XIX até o fim da Segunda Guerra. Quase ao mesmo tempo, até ser realmente cumprida a lei proibindo o tráfico de escravos, chegaram ao Brasil mais de 5 milhões de africanos. Já havia no Brasil cerca de 10 milhões de nativos, cuja quase totalidade foi sendo dizimada pelos colonizadores.

Em outras palavras, de uma maneira geral, como diz a historiadora Maria Helena Machado, da USP, “a avó do brasileiro é indígena, a mãe africana e o pai, majoritariamente, europeu”. Para ela, a mulher escravizada, indígena ou africana, era um objeto para o escravizador, vítima constante de assédios e estupros, além de trabalhadoras eram também reprodutoras.

A historiadora usa mesmo de uma frase para isso: “no corpo da mulher escravizada se deu a colonização”. Como o Brasil foi dos últimos países a acabar com a escravidão, por pressão do agronegócio da época, o uso do corpo das mulheres negras e mestiças era normal na época.

A geneticista Tábita Hunemeier, da USP, lembra que essa situação de abuso e violência das mulheres fazia parte, no século passado, da expressão de pessoas mais velhas, quando diziam “minha avó foi pega no laço”. Com base na constatação da violência sexual por descendentes de europeus, a pesquisadora derruba “a mística da democracia racial que compõe a identidade nacional brasileira, já que a miscigenação, de modo geral, não foi consentida”.

Essa pesquisa mostra também uma utilidade prática em termos de saúde pública, já que foram identificadas mais de 36 mil mutações genéticas, capazes de influir no metabolismo e se manifestar em certas patologias. Entender essas mutações na população brasileira pode ajudar no lançamento das estratégias de saúde pública e na criação, pela indústria farmacêutica, de novos tratamentos adaptados ao Brasil.

Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.

Edições digital e impressa