Rio de Janeiro, 21 de Novembro de 2024

Mundo clandestino

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Quarta, 14 de Agosto de 2024 às 09:31, por: CdB

Uma reflexão sobre segredos, desejos reprimidos e a dualidade entre a vida pública e o que ocultamos, sufocados pelo politicamente correto e o medo do julgamento social.

Por Abraham B. Sicsú – de Brasília

“Falar” com o computador, um vício. Escrever uma maneira de se comunicar consigo mesmo. Para mim, a melhor. Fico contente que os outros leiam, nem tudo, claro, tenho vários arquivos que só eu conhecerei, mas, sem dúvida, o desejo é por para fora, sistematizar, o que está em turbilhão dentro de nós. Quase uma autoterapia necessária.

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De caminhos vividos e não vividos, de passos dados, de lutas internas

Domingo foi dia dos pais. Confraternizamos no sábado. Meu filho ia viajar. Um dia para a leitura, para a meditação, principalmente para reflexão. De caminhos vividos e não vividos, de passos dados, de lutas internas.

Café da manhã bem cedo, antes das seis. Uma caminhada na Mata de Francisco Brennand. Clima frio. 20 Graus. Para o recifense é preciso casaco, diz minha companheira. Árvores seculares, mata fechada, belo açude. Volta feliz, contato com a natureza, com o ar despoluído.

Em meu cadeirão sento, quase deito, vou ler. O autor Ricardo Piglia. Um escritor e acadêmico argentino. Deu aulas por anos em universidades de ponta americanas. Badalado. Morreu em 2017. Li apenas alguns poucos contos.

O livro, O Caminho de Ida. Tinha ouvido falar, tinha lido comentários, todos centrados numa crítica ao capitalismo tecnológico, ao “american way of life”. Ganhei no meu aniversário e fazia parte da minha lista prioritária.

O livro tem 250 páginas. Já tinha lido umas oitenta. Estava muito curioso pelo desdobramento dos acontecimentos. Dou-me como tarefa ir até o final. E cumpro. Boas horas de entretenimento e expectativa pelo desfecho. Leitura direta, sem muitas firulas, com enredo que me cativou.

O que me pegou como gancho que me fez ir ao final com tanto interesse? Com certeza não foi o politicamente correto, do qual já tenho tido exemplos de sobra. Nem a crítica pela crítica, cansado de ver textos que simplesmente não fazem proposituras. Sem dúvida a vida dupla da personagem do título foi a maior motivação, foi a chave do meu apego ao texto.

Algo é peculiar a todo ser humano, queiramos ou não, e foi ressaltado para a personagem de Ida. As vidas vividas por cada um de nós que não são explicitadas, que não se pode, seja qual for o motivo, externar. Todos têm segredos que as amarras sociais, que os preconceitos, não permitem deixar claro. O julgamento da sociedade é terrível, sabemos bem disso.

Ida era uma professora brilhante. Reconhecida por todos. Com carreira promissora e bem estruturada. Mas, no fundo, tinha uma segunda vida. A de revoltada com a sociedade que vivia, a de revolucionária que precisava fazer algo para mudar um mundo que desacreditava. O anarquismo como meio, o terrorismo justificado como processo. Algo inconcebível para acadêmica tão valorizada.

Não se chega normalmente a tanto, os medos e mesmo a própria racionalidade fazem com que se repudiem extremismos. Mas, quem não teve desejos escondidos que modificariam a sua vida? Pensem bem, sem hipocrisia.

Revolucionários

Sejam ideológicos, morais ou mesmo revolucionários. Quem não desejou dar um chute no correto e partir para caminhos díspares, totalmente novos, inusitados? Temos medo de assumir o que realmente somos, no que realmente acreditamos. É uma realidade inegável, dar satisfação aos outros é obrigação para não ser massacrado, para não ser banido e aniquilado. O ser aceito é uma obsessão.

O politicamente correto sufoca as pessoas. Faz com que deixem de viver o que realmente as motiva. Faz parecer erro tudo que socialmente não seja convencional. Esconde-se o que realmente se acredita. É incorreto ousar. Negando a frase popular, a sociedade é cruel, é permitido proibir. Tudo, sem restrição, em todos os campos da vida.

Podem os leitores considerar que se está sendo dramático, que a ordem estabelecida é fundamental para a existência humana, mas, será que rupturas não são necessárias? Não digo aquelas que foram fundamentais para os caminhos da humanidade, digo as que são feitas para o bem da psique do indivíduo, para o reencontro consigo mesmo. Estas são básicas e têm que ser feitas e admitidas. Nada de censura, nada de repressão.

Perguntarão os leitores, dessa sua convicção, quais as suas verdades escondidas que ainda não revelou?

Bem, não irei revelar. Tenho meus medos, começar novas lutas para um ancião é imprudência, é desatino. Ficarão em meus escritos que não divulgo nem divulgarei.

 

Abraham B. Sicsú, é professor aposentado do Departamento de Engenharia de Produção da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e pesquisador aposentado da Fundaj (Fundação Joaquim Nabuco).

As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil

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