Não deve restar dúvidas quanto à importância da luta do povo organizado por uma reforma agrária popular, pois a terra conquistada se torna território ocupado que não se concretizaria sem a pressão e a mobilização do campesinato.
Por Letícia Chimini – de Brasília
“Prefiro morrer na luta do que morrer de fome” (Margarida Alves; Roseli Nunes)
As camponesas são defensoras dos direitos humanos e, no Brasil, desenraizaram direitos para a totalidade da classe trabalhadora. Nas raízes da formação sócio-histórica do Brasil, o campesinato planta resistência, colhe direitos, mas também as várias formas de violências plantadas pelo Estado aliado ao capital.
Alguns nomes são conhecidos e foram visibilizados pela história, outros tantos apagados. O nome das mulheres tem reconhecimento quando uma tomba lutando. Margarida Maria Alves foi dessas mulheres, cuja luta pelos direitos trabalhistas e pela reforma agrária se fundiu com a própria vida. Sua atuação se tornou alvo de ameaças e perseguições por parte de proprietários de terras e grupos poderosos contrários à luta coletiva que fazia. Ela foi assassinada em 12 de agosto de 1983, em frente à sua casa por pistoleiros contratados.
Roseli Nunes também foi uma lutadora pela reforma agrária e também foi assassinada. Sua vida foi ceifada durante um protesto de pequenos agricultores e agricultoras no Norte do RS. Margarida e Roseli tinham muitas coisas em comum, haja vista que a luta por terra, pelo território, por justiça e direitos anda pari passu na luta contra a fome. Nessa data, conclamamos para reflexões que convergem a fome, a luta por terra e território (recursos naturais) e, consequentemente, para darmos visibilidade às formas violentas e desigualdades estruturais que decorrem dos conflitos na luta de classes.
Essas, nos remetem para a formação de um país que assentou suas estruturas na exploração, expropriação e que transitou todas as fases do Brasil desde Colônia, do Brasil Independente, da Velha República, da República Nova, da Ditadura Civil-Militar, chegando ao Brasil atual. Dessa herança, que se tornou projeto de sociedade, permanecem, tanto a subordinação da produção agrícola aos interesses exportadores, quanto os componentes não capitalistas nas relações de produção e nas formas de propriedade, que são redimensionadas e incorporadas à expansão capitalista, territorializando o capital e monopolizando a terra.
Nessa dinâmica, a violência se apresenta como uma dimensão fundamental para a compreensão do contexto brasileiro e contribui para as análises da relação entre acumulação e a manutenção do poder das classes dominantes, que se reflete até os dias de hoje, na forma violenta como esse país foi invadido, saqueado, expropriado, com profundas desigualdades no acesso à terra, no genocídio dos povos originários, na escravização do povo negro, na qual o capitalismo desenvolveu particularidades de um capitalismo dependente, com primazia da superexploração da força de trabalho.
Marx (1984) já apontava em sua obra a violência como uma potência econômica presente no processo de acumulação capitalista. Seguindo pelas raízes históricas do Brasil percebemos que a violência estruturou e estrutura um contexto de domínio das elites agrárias, conservadoras, escravista e coronelistas, quase um retrato do Congresso Nacional brasileiro.
Marini (2000) destacou a importância da exploração do trabalho excedente para a acumulação capitalista nos países dependentes, bem como a utilização de mecanismos de coerção e violência para garantir a manutenção dessa exploração. Bambirra (2013), apontou a violência como forma de reprimir as lutas e resistências da classe trabalhadora, garantindo a manutenção do poder das classes dominantes.
Para Castelo (2021), a violência é uma potência econômica que permite ao capitalismo dependente obter vantagens econômicas e manter sua dominação. Essa violência se manifesta de diferentes formas, como a violência institucionalizada pelo Estado, a violência das classes dominantes sobre as classes subalternas e a violência simbólica presente na cultura e nas relações sociais, que vai transversalizar.
Redemocratização
No período de redemocratização, a partir de 1988, ocorre uma reorganização do capitalismo no campo brasileiro que pactua latifundiários com a indústria transnacional, com a mídia, com Estado e com o capital financeiro. Essa composição fortaleceu as relações de poder que articulou terra, as empresas transnacionais e a mídia hegemônica, costurando esse enredo. Por fim, tudo isso com fomento do Estado, através de políticas públicas e de alteração da legislação para estar em conformidade com o projeto pretendido. O Agro não é POP, o Agro é morte!
A insistência da mídia hegemônica, que fez sua fortuna na ditadura militar, engana propositalmente a sociedade brasileira quando coloca na mesma propaganda o pequeno agricultor, a camponesa e o latifundiário, no intuito de desmobilizar a identidade camponesa e colocar em um mesmo contexto latifundiários e a agricultura camponesa familiar. Engana o povo quando utiliza a floresta e as monoculturas na mesma mídia para pintar de verde o que está manchado de sangue.
O Agro não é top, o agro é veneno na mesa. O Agro é fome! Cabe ainda, inferirmos sobre os números divulgados pelo censo agropecuário que denuncia desde 2006 que o agro (latifúndio) possui cerca de 70% das terras agricultáveis, utilizam 70% dos recursos públicos para produção e produzem apenas 30% da comida que vai para a mesa do povo brasileiro (BRASIL, 2009). O restante são commodities, mercadoria em sua forma bruta.
O Congresso Nacional brasileiro é a imagem que incorpora os interesses das classes dominantes, com ênfase nas bancadas da bíblia, do boi e da bala. O agronegócio brasileiro foi forjado na escravização do povo negro, no cercamento das terras e das águas, no genocídio dos povos originários, na destruição ambiental, na subserviência e subalternidade econômica, política, social e cultural aos países centrais, na grilagem de terras, no extrativismo predador e na produção de commodities em detrimento da produção de comida. O sociometabolismo do capital faz gerar mais violências sobre a classe trabalhadora em um Estado que tem o controle das armas e vimos a cada golpe sobre a jovem democracia, ainda que burguesa, armas a serviço das milícias, da pistolagem e nas mãos do ‘cidadão de bem’.
A violência que enfrentou Margarida Alves é estruturante da formação brasileira. Margarida Maria Alves foi a primeira mulher a presidir o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, por 12 anos, em plena ditadura militar brasileira, realizando diversas denúncias e judicializando ações trabalhistas.
O seu caso é representativo do contexto generalizado de ataques e assassinatos de defensores e defensoras de direitos humanos no Brasil, pois foi assassinada em sua residência, na frente de toda a comunidade, vizinhos e familiares por um indivíduo que não fez questão de esconder seu rosto. A violência que matou Margarida Alves e Roseli Nunes segue ceifando vidas, ameaçando sujeitos da história e criminalizando quem ouse alterar a ordem hegemônica dos privilégios no Brasil. Não é só a bala de uma arma que provoca a morte, a negligência do Estado mata tanto quanto e a conivência mata ainda mais.
Lutas
Margarida Alves, Roseli Nunes e tantas outras e outros existiram, resistiram e suas existências são marcos históricos. Suas vidas e suas lutas deram origem e são inspirações para marchas, assentamentos, para lutadores e lutadoras do campo, das florestas e das águas. Todos os anos, nessa data, Margaridas partem de todos os cantos do Brasil e seguem em marcha até a capital do país para denunciarem o agro e as violências e ataques sofridos dentro de seus próprios territórios.
Não deve restar dúvidas quanto à importância da luta do povo organizado por uma reforma agrária popular, pois a terra conquistada se torna território ocupado que não se concretizaria sem a pressão e a mobilização do campesinato. Essas conquistas extrapolam fronteiras e regiões e convergem em força para a totalidade da luta da classe trabalhadora, que mobilizada luta contra a miséria nas cidades, contra o racismo que estrutura as violências contra o povo negro e que condena à morte crianças e jovens nas periferias, contra a desigualdade de gênero que chancela a certeza da injustiça.
Nesse período de lutas e que marcham camponesas de todos os cantos do Brasil, que possamos nos tornar Margaridas na luta pela terra liberta e pela emancipação humana.
Letícia Chimini, é assistente aocial, mestra em Desenvolvimento Regional (Unisc), doutora em Serviço Social (PUC-RS), compõe a coordenação da Campanha Permanente Contra a Violência no Campo, militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).
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