Comecei o dia lendo que os dirigentes petistas aconselharam Lula a evitar atos e palavras contundentes, passando a interpretar o papel de um estadista, de forma a aproveitar a mais gritante vulnerabilidade do Jair Bolsonaro.
O mito que nunca foi nada além de um mico, em suas aparições públicas, aparenta quase sempre ser um doido recém-evadido do hospício (e o genocídio decorrente de seus surtos psicóticos anticientíficos durante a pandemia a cada dia convence mais brasileiros de que ele é, na verdade, um doido que, para infelicidade geral da nação, esqueceram de colocar no hospício).
Em discurso e entrevista coletiva na manhã desta 4ª feira (10), Lula seguiu à risca a recomendação, chegando a arrastar-se aos pés do empresariado, como em 2002:
"Se ele quer dinheiro, tem que gostar de mim. Se quer ver o povo consumir, tem que gostar de mim. (...) Eu não entendo esse medo, eu era chamado de conciliador quando presidia. Quantas reuniões fazia com os empresários? Dizia: 'O que vocês querem? Então, vamos construir juntos'."Má escolha de verbo, construir lembra Odebrecht.
Como em 2002, Lula promete que será um bom menino |
A performance teria sido perfeita caso ele houvesse resistido à tentação de proclamar em tom apoteótico que ficara provada sua inocência, quando, na verdade, a decisão do ministro Edson Fachin foi apenas de considerar que os processos contra ele deveriam ter tramitado em Brasília e não em Curitiba, daí tê-los anulado e devolvido à 1ª instância.
Como o que impedia Lula de disputar eleições era a Lei da Ficha Limpa, tal obstáculo foi removido quando as condenações viraram pó e lhe restituíram condição de réu ainda não julgado. Demagogia à parte, foi só isto que aconteceu.
Vão trocar a foto e reimprimir? |
Utilizou-se contra Lula um inusitado rigor e os grandes empresários com os quais seu governo se acumpliciou não precisaram de nenhum DOI-Codi para cantarem como passarinhos. Sem nenhum tapa ou choque elétrico, apenas para saírem logo da cana, confessaram até que assaltavam as lancheiras dos colegas no primário. E devolveram os lanches...
Caso Lula tivesse superado seu lado mitômano, jamais pretenderia ter sido vítima vítima "da maior mentira jurídica contada em 500 anos de história". Por que não falar, simplesmente, a verdade?
Seria esta: "Meu governo apenas atuou segundo o figurino de todos os governos do Brasil, recorrendo à corrupção para conseguir aprovar seus projetos no Legislativo e para financiar suas campanhas políticas. Se não prenderam todos os outros governantes deste século e dos séculos passados, mas tão-somente a mim, violentaram escandalosamente a igualdade de todos perante a lei".
Estão programando a reprise?
Temo que morrerei sem ver um político profissional fazendo tal confissão. Mas, fiel ao rumo que escolhi para minha vida em 1967, continuarei proclamando sempre a verdade, que é revolucionária, e não lorotas convenientes. Devo ter nascido no país errado para adotar tal postura, mas a manterei até o fim.
De resto, fica cada vez mais evidente que Lula será o grande trunfo do sistema para o lugar do Bolsonaro, cujo governo derrete a olhos vistos. A contagem regressiva chegará ao fim em semanas, o mais tardar em meses. É isso ou o caos.
Mas, impeachments demoram demais e tanto a crise sanitária quanto a depressão econômica precisam de respostas urgentes, caso contrário o extermínio de coitadezas atingirá proporções inimagináveis.
Só vejo uma saída: os que botaram o Bolsonaro no Palácio do Planalto tirarem-no de lá interditando-o por insanidade mental ou forçando-o à renúncia. Nos bastidores da política brasileira, como os bem informados sabem muito bem, os realmente poderosos sempre arrumam um jeito de viabilizar esses passes de mágica.
Difícil mesmo seria arrumarem uma desculpa para a entrega imediata do poder ao Lula. Mas, o objetivo principal –evitar que o Brasil exploda– poderia ser alcançado com Mourão cumprindo o restante do mandato, à frente de um governo de salvação nacional do qual o Lula fosse o principal destaque e cartão de visita.
As prioridades, obviamente, seriam:
— reverter todas as lambanças cometidas por Bolsonaro na área de saúde, fazendo com que nela voltassem a vigorar unicamente os critérios científicos;
— realizar em regime de urgência total a vacinação em massa contra a covid;
— criar opções para a sobrevivência dos desempregados, dos excluídos, dos vulneráveis e dos mais pobres em geral, rudemente golpeados pela pandemia.
Ou muito me engano, ou será assim que a ópera bufa acabará, com a conciliação de sempre, as elites desarmando bombas-relógios prestes a explodir e nada realmente se resolvendo.
Na arte de empurrar as crises com a barriga e ir adiando o inadiável mediante gambiarras institucionais, a classe dominante brasileira é uma virtuose.
(Celso Lungaretti, jornalista, militante de esquerda, resistente à Ditadura Militar, editor do blog Náufrago da Utopia)
Direto da Redação é um fórum de debates editado pelo jornalista Rui Martins.