Vimos supostos cristãos defendendo a criminalização do aborto no caso de meninas e mulheres estupradas, inclusive com encenações patéticas.
Por Milton Rondó – de Brasília
“Uma música que comece sem começo e termine sem fim. Uma música que seja como o som do vento numa enorme harpa plantada no deserto”, Vinicius de Moraes.
Assistimos na semana passada a alguns dos momentos mais degradantes pelos quais um Parlamento, qualquer um, terá passado.
No meio do pandemônio demoníaco, vimos supostos cristãos defendendo a criminalização do aborto no caso de meninas e mulheres estupradas, inclusive com encenações patéticas em defesa daquela tese medieval.
O Congresso brasileiro desceu muito baixo.
Importante notar como essa cambada evangélica (não é uma bancada), católicos incluídos, utiliza a religião para fazer proselitismo conservador.
Por exemplo, por que não se preocupam com as mortes em série promovidas pelo governo de São Paulo, com câmeras peitorais que podem ser ligadas e desligadas, conforme a PM queira cometer crime e ficar impune?
Ou em política externa, por que nada diz (esperar que fizesse seria demais) sobre a situação dramática no Haiti, em que as gangues dominam 90% do território da capital, extorquindo, sequestrando e cometendo todo tipo de crime contra a população indefesa? São assim tão racistas quanto os europeus e estadunidenses (que ainda por cima são os que lucram com a venda de armas para os traficantes de drogas, pessoas, órgãos etc.)?
Na terça-feira, deve chegar ao Haiti o primeiro batalhão de policiais do Quênia, para tentar restabelecer alguma ordem no país.
Provavelmente, a maioria é muçulmana, como a maior parte da população do queniana. Porém, são mais cristãos do que os falsos cristãos locais (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil incluída).
Diplomacia brasileira
A diplomacia brasileira parece compartilhar essa “não saída” conservadora, que se contrapõe frontalmente à “igreja em saída”, tão desejada pelo papa Francisco.
A timidez (para dizer o mínimo), no caso, inevitavelmente representará um epitáfio para ela, em âmbito internacional. Uma política externa sumida, triste fim para quem já teve um Barão do Rio Branco à frente da chancelaria.
Vale recordar que, como já dissera Caetano, o Haiti também é aqui.
Explico: em matéria de CartaCapital, conhecemos que o assassino da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, Ronnie Lessa, teria recebido a oferta dos mandantes Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, e seu irmão, Chiquinho, deputado federal, de receber sociedade em loteamento ilegal na Zona Oeste da capital, em troca do assassinato da vereadora.
Ou seja, nesse caso, aos olhos do assassino, o crime seria justificável, na medida em que seria uma espécie de “empreendedorismo”, macabro, “negócio” aquele que lhe renderia milhões.
Insisto: o assassino, aparentemente, não notava nenhum limite definido no campo do “empreendedorismo” entre a vida e a morte, o legal e o ilegal, a moral e a amoral.
Não é assim que agem os bandos no Haiti, cobrando “pedágios” de todos? Qual a diferença entre a ação deles e dos fabricantes de armas dos EUA que os municiam e com isso ganham fortunas, incluive nas anódinas bolsas de valores?
Não é o lobby das armas o negócio mais lucrativo da atualidade, como não se cansa de repetir o Papa Francisco?
No Brasil, país que se quer cordial, ainda cometemos a crueldade de assimilar vítima a fraqueza. Não se confundem, porém, os conceitos, obviamente.
Por exemplo, o líder do Wikileaks liberado, Julian Assange, em nenhum momento foi um fraco, todo o contrário: denunciou as atrocidades cometidas pelos EUA no Iraque e no Afeganistão (assassinatos, torturas, entre outras violações de direitos huamnos); permaneceu anos encarcerado, primeiramente em virtual prisão domiciliar na embaixada do Equador em Londres, depois em um cárcere de segurança máxima na Inglaterra; portanto, uma vítima do “civilizado” Ocidente, que se quer guardião da liberdade, dos valores democráticos etc. Em nome deles, promove também guerras de conquista e mantém populações em estado de pobreza e barbárie, como assistimos todos os dias em Gaza, no Sudão, na República Democrática do Congo, na Líbia etc.
Deus nos livre, a um tempo, da hipocrisia dos falsos cristãos e dos falsos democratas.
Na verdade, a modernidade trouxe realidade cenográfica: os shopping centers, os condomínios, realidades “fake”, em suma.
Tudo são fachadas, lâminas do real, cortadas sobre a pele pobre, negra, feminina, LGBT, de todos os que sustentam esses cenários para o ilusionismo confortável, asséptico, das classes que se beneficiam da exploração das demais.
Isso também vale para o jornalismo. No caso de Gaza, tudo teria iniciado em 7 de outubro passado, não em 1948, quando os palestinos foram expulsos de suas terras e passaram a sofrer todo tipo de atrocidades por parte dos ocupantes, até hoje.
A história ssrvida em lâminas, biombos.
Assim é a cobertura da TV estatal francesa que se refere sempre ao “Ministério da Saúde” do Hamas, sem reconhecer, dessa forma, que o Hamas fora anteriormente eleito para dirigir Gaza e que, por isso, se trata do Ministério da Saúde de Gaza, não do Hamas.
Com efeito, mesmo que a realidade lhes cuspa na cara que o Exército israelense é capaz de amarrar uma pessoa ferida sobre o capô de um veículo militar e dessa forma bárbara o transportar ou que mais de 100 locais das Nações Unidas foram bombardeados em Gaza, matando mais de 190 trabalhadores e trabalhadoras humanitários, a lâmina ideológica não lhes permite chegar à conclusão óbvia: que o atual desgoverno da extrema-direita israelense não é religioso, apenas terrorista, e deveria, há muito, ter levado a comunidade internacional, como mínimo, a suspender Israel da ONU, até que a democracia e a liberdade aportem novamente por lá, deixando o terror como uma lembrança longínqua, como um dia será no Caribe, inclusive no Brasil dos falsos cristãos e liberais, lenbrando que somos o limite sul do mar do Caribe.
Milton Rondó, é diplomata aposentado. milton.rondo@gmail.com
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