Muitas vezes, algumas mudanças de natureza política e institucional ocorrem para a boa direção, mas se dão por vias tortas. Esta parece ser a realidade do início do segundo biênio do mandato de Jair Bolsonaro. Desde a época da campanha eleitoral de 2018, o capitão prometia mundos e fundos no que se refere à configuração de seu governo.
Por Paulo Kliass – de Brasília
Muitas vezes, algumas mudanças de natureza política e institucional ocorrem para a boa direção, mas se dão por vias tortas. Esta parece ser a realidade do início do segundo biênio do mandato de Jair Bolsonaro. Desde a época da campanha eleitoral de 2018, o capitão prometia mundos e fundos no que se refere à configuração de seu governo. A identificação de um profundo descontentamento da população para com os rumos seguidos pelo país e com a forma como se desenvolvia a política de forma geral, abriu caminho para propostas do tipo panaceia, que iam desde a suposta ruptura com a forma fisiológica de governar junto ao Congresso Nacional até a liberalização geral da posse de armas para a população. Duas iniciativas, no entanto, marcavam o tom bastante peculiar da formação de seu governo em janeiro de 2019. Ancorado na proposta demagógica e recorrente de redução de despesas governamentais, o recém empossado promoveu a diminuição do número de ministérios e encaminhou uma série de fusões de órgãos da administração pública federal. As medidas atabalhoadas e irresponsáveis pouco alteraram o volume de gastos, mas tal narrativa quase sempre emplaca positivamente na opinião pública quando o governo toma esse tipo de inciativa. De um lado, o reforço da narrativa contra a corrupção e o convite para que o juiz Sérgio Moro assumisse o Ministério da Justiça, com seu organograma reforçado e turbinado pelas áreas de segurança do governo federal. Assim, o todo poderoso chefe da Operação Lava Jato recebia de bom grado a recompensa pelos bons serviços prestados, em especial a condenação e a prisão de Lula, impedindo que o ex presidente voltasse a concorrer naquelas eleições.Guedes não entregou o que prometeu
O segundo lance foi o convite a um reconhecido membro da nata do financismo para que assumisse o comando da política econômica de seu governo. Paulo Guedes foi fundamental para abrir as portas do seleto grupo das elites para aquele tosco capitão afastado do Exército, que passou sete mandatos como deputado federal a defender pautas como pena de morte, liberdade de posse de armas ou defesa da tortura e dos torturadores. A contrapartida exigida pelo banqueiro foi carta branca pata implementar seu programa conservador e liberal na economia, solicitação que foi acompanhada por uma impressionante concentração de poder sob sua alçada na Esplanada dos Ministérios. O fato concreto é que, apesar de tudo, 2019 foi marcado por um crescimento pífio da atividade econômica. Boa parte das expectativas geradas pela presença de um Guedes vitaminado no governo foram frustradas com o anúncio de um Pibinho de apenas 1,1%. Na sequência, teve início a pandemia e a recessão a ser ainda oficializada pelos dados do IBGE foi muito mais acentuada em 2020. A queda da popularidade do governo guarda relação também com a sua incapacidade em lidar com a covid-19, uma vez que o total de mortes se aproxima de 250 mil, Paulo Guedes convenceu Bolsonaro a não renovar o auxílio emergencial em dezembro e a trapalhada da novela das vacinas segue a cada dia com um capítulo mais trágico. Para evitar ainda maiores danos em sua estratégia de buscar a reeleição em 2022, o capitão começou a deixar para trás boa parte das promessas de campanha. Articulou politicamente com o Centrão e com a sopa de letrinhas fisiologismo partidário no legislativo. Conseguiu eleger candidatos alinhados com o Palácio do Planalto para presidir a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, mas a fatura promete ser elevada. A contrapartida exigida pelos aliados de última hora envolveu a liberação de verbas bilionárias do Orçamento, a nomeação de cargos de primeiro e segundo escalão, além de promessas de emendas de interesse dos parlamentares.Monstrengão da economia é disfuncional
Mas a voracidade do toma-lá-dá-cá não conhece limites. As pressões agora vão no sentido de que seja promovido um redesenho da estrutura ministerial. Um dos objetivos mais comentados refere-se a um possível desmembramento justamente do super Ministério da Economia. Afinal, é importante lembrar que ele se formou pela fusão de quatro pastas importantes e tradicionais na administração pública federal em nosso País. Guedes obteve o consentimento de Bolsonaro para que os antigos Ministério da Fazenda, Ministério do Planejamento, Ministério da Indústria e Ministério do Trabalho ficassem todos sob seu comando. Além do ineditismo, a criação desse verdadeiro monstrengão concentrou poderes em único ministro como nunca havia ocorrido na história política brasileira. Estão sob o comando do banqueiro convertido em peça chave no xadrez bolsonarista órgãos como Secretaria da Receita do Brasil, Secretaria do Tesouro Nacional, Banco Central, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal. BNDES, Banco do Nordeste, Banco da Amazônia, Secretaria do Orçamento Federal, Secretaria de Gestão, Secretaria de Controle das Empresas Estatais, IPEA, ENAP, ESAF, Secretaria de Comércio Exterior e toda a estrutura das superintendências estaduais das relações de trabalho, para citar apenas alguns dos inúmeros instrumentos da administração federal que passaram a ficar à sua disposição. Tal concentração excessiva traz consigo uma série de consequências negativas. Existe o conhecido problema da disfuncionalidade de uma máquina hiper concentrada, que perde em agilidade e eficiência para cumprir com suas missões de formulação e implementação de políticas públicas. Por outro lado, a centralização cria dificuldades para a inovação e a busca de soluções mais adequadas aos problemas rotineiros e extraordinários da administração governamental. Além disso, o processo agregou órgãos que deveriam obedecer a hierarquias separadas, justamente em razão de sua contradição potencial no entendimento e equacionamento dos problemas associados à política econômica.Fazenda e Planejamento: o debate necessário
Existe uma marca recorrente em nossa tradição política, segundo a qual o Presidente da República deveria ouvir pelo menos duas opiniões distintas a respeito dos rumos e das problemáticas no campo da economia. Desde 1962, quando foi criado o Ministério do Planejamento sob o governo João Goulart, a acomodação de tais visões diferentes sempre se dava entre este e a pasta da Fazenda. Mas para além desse aspecto, é importante ressaltar a natureza distinta, por vezes até mesmo oposta, entre as missões dos dois ministérios. A Fazenda comporta os principais órgãos arrecadadores do governo e mantém sob sua coordenação o Tesouro, com função precípua de buscar o equilíbrio nas contas públicas. Já o Planejamento inclui a Secretaria do Orçamento, que se propõe a executar o gasto governamental. Assim, no limite, o primeiro seria um ministério arrecadador e que teria em seu DNA a busca do resultado superavitário, enquanto o outro seria um ministério pejorativamente apelidado de “gastador”, uma vez que sua missão é a de executar o orçamento, ou seja, realizar as despesas do governo. Setores ligados à base aliada já identificaram uma janela de oportunidade com o crescente isolamento político de Guedes e buscam associar o aumento da impopularidade de Bolsonaro ao desastre observado na área da economia. Assim, a manobra tem por objetivo abrir um espaço para acomodar novas indicações políticas com a separação do superministério. A proposta maximalista articula pela volta aos quatro anteriores à chegada do novo presidente, deixando o old chicago boy apenas com as atribuições da antiga Fazenda. Mas face às dificuldades políticas em levar a cabo tal intenção, os artífices se contentariam apenas com a separação do antigo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.Recuperar o protagonismo do Estado
É evidente que o limitado nível de capacitação política dos integrantes desse governo faz com que os operadores da mudança enxerguem nessa operação apenas um meio de fugir às garras contracionistas de Guedes, bem como de criação de maiores espaços para se defenderem dos efeitos negativos do austericídio sobre suas intenções de aumentar as despesas com vistas às eleições de 2022. Desnecessário lembrar que tal movimento passa longe de qualquer aspecto de debate doutrinário, reservando-se a uma pitada de pragmatismo para assegurar a sobrevivência política dos grupos interessados. Mas de qualquer forma apenas o simbolismo do restabelecimento do Planejamento já contribui para colocar foco e debate sobre a necessidade de mudanças na orientação da política econômica. Caso a medida ganhe voo próprio, é de se imaginar que a equipe do eventual ministério recuperado não seja completamente alinhada com os pensamentos de Guedes. Discussões a respeito de alternativas de rumo para a economia e polêmicas sobre as mesmas, bem como sobre a necessária recuperação do protagonismo do Estado poderão até mesmo passar a integrar as reuniões coordenadas pelo Planalto e pela Casa Civil. Por outro lado, como o próprio título do ministério define, a questão do planejamento público poderia voltar a ser item da agenda política. Em tese, podem voltar a serem valorizados instrumentos importantes previstos na própria Constituição, como o Plano Plurianual (PPA), atualmente totalmente desacreditado e desprezado. A experiência da pandemia e a observação dos caminhos adotados por boa parte dos países desenvolvidos para superar a crise dela derivada têm proporcionado novos horizontes em termos de opções de política econômica. Assim, em mais uma dessas peças que a História nos prega, é possível que os interesses mais tacanhos do fisiologismo terminem por abrir espaço no debate público para que eventual desmembramento do Ministério da Economia reposicione os autênticos Ministérios da Fazenda e do Planejamento na articulação coordenada dos rumos da política econômica.Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
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