Rio de Janeiro, 21 de Novembro de 2024

O Brasil e o horror de nossos dias

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Segunda, 28 de Junho de 2021 às 06:20, por: CdB

 

A semana no Brasil não foi para iniciantes. Mas é como se todo mundo aqui já nascesse calejado por esse surrealismo tupiniquim, que não tem nada de surreal. É sempre a mais pura realidade, de um realismo mágico escrito com sangue, por uma força sinistra que não podemos ver, mas que sentimos sua presença todos os dias.

Por Rodrigo Barradas – de Brasília

A semana no Brasil não foi para iniciantes. Mas é como se todo mundo aqui já nascesse calejado por esse surrealismo tupiniquim, que não tem nada de surreal. É sempre a mais pura realidade, de um realismo mágico escrito com sangue, por uma força sinistra que não podemos ver, mas que sentimos sua presença todos os dias.
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Matheus Ribeiro, jovem negro que foi acusado por um casal branco de ter roubado uma bicicleta elétrica no Leblon
Para além do circo de horrores que tem sido a cobertura da grande mídia sobre o suposto serial killer do Distrito Federal, Lázaro, não Bolsonaro, com o mesmo racismo nacional de sempre, com terreiro invadido e fotografado para dizer ser a casa do suspeito e ligar de forma criminosa os símbolos das religiões afro a um satanismo esteriotipado por filmes americanos, como numa obra pastiche de horror, temos também parte da nossa justiça como órgão garantidor do nosso Apartheid “bonzinho”, que fazia meu conterrâneo Gilberto Freyre relevar sua verdadeira face absurda. Isso, porque a mesma justiça que negou a prisão preventiva do verdadeiro ladrão da bicicleta elétrica do Leblon, esse um branco, loiro, de classe média e de roubos recorrentes, decide investigar criminalmente a vítima por interceptação de produtos roubados, esse o jovem negro acusado de ter roubado a própria bike, que foi comprada na internet no famoso site MercadoLivre. O escárnio da situação atual tem nome: racismo e intimidação.

A Casa Grande do Brasil digital

A Casa Grande do Brasil digital até se compadece de alguns casos de racismo, como expostos em péssimas atuações de dramalhões televisivos em que a vítima é sempre dócil. O negro submisso que chutado como cão de rua, chora e sofre calado. Para aqueles que levantam a voz, como fez o jovem Matheus Ribeiro, ao gritar enfim algo que sempre está entalado nas gargantas dos que nascem pretos nesse país e sofrem as humilhações cotidianas que só o nosso racismo brasileiro é capaz de dar, “vai tomar no cu, playboyzada do Leblon”, existe uma lição amarga. Como podemos ver nesse caso: “não se revolte e não grite com nosso jovens. São só crianças”. A classe média e elite brasileira ama o personagem negro que é vítima mas que é dócil como um cão vira-latas, seja ele real ou ficcional. Como Mandela. Para essa gente tida como os educados do terceiro mundo, mas que são analfabetas funcionais em muitos casos, há um choque ao perceber que o Mandela da reconciliação, que não perseguiu brancos e que tentou unir a África do Sul era considerado terrorista até o ano de 2008 pelo Governo dos EUA. Ficam horrorizados ao saber que ele esteve ligado a movimentos armados contra o Apartheid e que tinha fortes ligações com o Partido Comunista do seu país, na figura de Joel Slovo. Quando descobrem isso, ele já não é mais legal. Vira inimigo na hora.

A força sinistra

A força sinistra que escreve essa obra de terror que é viver no Brasil tem nome: capitalismo! O mercado livre como estampado no site de compras e que permite a venda de objetos roubados sem se responsabilizar é como aquele que fez o translado forçado à base de estupros da carne e de estupros culturais, de milhões de negros da África até às Américas. É ele que mantém toda essa lógica perversa de bairros como clubes exclusivos, através da nossa desigualdade que é tão racial e de nossa justiça como gangue que age em prol da continuidade desse sistema. Coincidentemente ou não, ao chegar ao final dessas linhas, começa a tocar aqui nos meus fones de ouvido a música Samba Esquema Noise, da Mundo Livre S/A ,  grupo seminal do movimento Mangue aqui no Recife, em que a letra diz: “A felicidade como a morte é como um concurso milionário da TV. Existe um globo infinito com bilhões de bolinhas girando em algum lugar. A cada instante uma deusa retira um número que pode ser o meu, dá pra entender? Por isso, nada de pudores. Ou você explora o próximo, ou o próximo é você. Esta é a única e verdadeira moral no mundo livre”. Não me despeço, sem parafrasear o jovem Matheus e também mandar um recado para essa justiça racista e cara de pau, que samba carnaval na avenida e diz que vivemos uma democracia racial: “vai tomar no cu, justiça playboyzada do Leblon”!

Rodrigo Barradas, é jornalista e autor de Em Chamas, livro de poesias (2015).

As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil

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