A profundidade da crise no Rio do Grande do Sul passou a exigir uma conduta distinta no que se refere à liberação dos recursos federais. Mais uma vez deu-se o passe mágica e o inexistente apareceu.
Por Paulo Kliass – de Brasília
A tragédia criminosa que atravessa a região sul do Brasil termina por jogar luz sobre as necessidades crescentes e emergenciais de recursos públicos para enfrentar a crise do momento atual e iniciar a implementação de medidas para a busca de soluções de médio e longo prazos. Para além das causas associadas ao fenômeno do aquecimento global e do surgimento dos chamados eventos extremos, a situação no Estado do Rio Grade do Sul tem sido fortemente agravada pela postura negacionista e irresponsável do governador Eduardo Leite. Na cidade de Porto Alegre, por outro lado, o prefeito Sebastião Melo também contribui para agravar o quadro dos desastres das mortes e da falência generalizada de políticas públicas para prevenção e mitigação da situação dramática.
Em meio ao quadro caótico da região, as lideranças políticas da direita e da extrema direita insistem em buscar a responsabilização dos eventos apenas como um fato inesperado da natureza e ainda tentam jogar a responsabilidade da crise no colo do governo federal. No entanto, as informações que começaram a ser divulgadas desde o início apontam na direção exatamente oposta. Tanto o Executivo estadual quanto o poder municipal de Porto Alegre desconsideraram de forma absurda todos os alertas emitidos por especialistas e pesquisadores. Existiam estudos que há mais de 10 anos previam o incremento das chuvas na região sul, tal como está ocorrendo atualmente.
Os orçamentos destinados à prevenção de acidentes foram reduzidos a quase nada e os órgãos públicos estaduais e municipais envolvidos com a matéria passaram por um minucioso processo de sucateamento e extinção. Além disso, os dirigentes do bloco conservador em escala nacional têm apresentado propostas de flexibilização das regras de preservação ambiental, com o intuito de facilitar os ganhos dos empreendimentos do lobby da especulação imobiliária nos grandes centros urbanos e de ampliar a rentabilidade do agronegócio. Esse é o chamado “pacote da destruição”, tal como vem sendo denunciado pelo Observatório do Clima há um bom tempo. Assim, não existe razão alguma para esse pessoal da terra arrasada agora manifestar sua surpresa com o ocorrido. Pelo contrário, eles deveriam ser responsabilizados civil e criminalmente pelo que fizeram ou também por tudo aquilo que deixaram de fazer para evitar o desastre e suas consequências.
A direita é responsável: Brasil, Rio Grande do Sul e Porto Alegre
De toda forma, a urgência provocada pela crise escancarada obrigou o governo Lula a flexibilizar a obsessão austericida de seu Ministro da Fazenda. Assim como ocorreu com o surgimento da crise da pandemia em 2020/21, desta vez também os recursos que não existam, logo apareceram. Lembremos que, apesar do negacionismo explícito de Bolsonaro e de seus principais auxiliares, o Congresso Nacional terminou por aprovar as propostas da oposição democrática e progressista, elevando os valores e a extensão do auxílio emergencial à época. Paulo Guedes assegurava que não existia capacidade orçamentária para tanto, dada a sua obstinação com a austeridade fiscal. No entanto, o poder legislativo se impôs e o dinheiro surgiu.
Atualmente o cenário se repete. Haddad tem relutado de forma sistemática em aceitar qualquer tipo de despesa nas contas federais que não esteja dentro dos parâmetros no novo arcabouço fiscal e das metas de zerar o déficit fiscal primário para o presente ano. Essa é a principal razão para os boatos nunca desmentidos de extinção dos pisos constitucionais para a saúde e a educação, além da proposta criminosa de desvincular os benefícios previdenciários do valor do salário mínimo. Os servidores públicos federais seguem com suas mobilizações e até o momento não foram atendidos em seu justo pleito de reposição salarial. A capacidade de retomada dos investimentos públicos continua sendo obstaculizada pelo compromisso da pasta com a austeridade irresponsável. Esse é balanço preliminar dos desastres provocados pelo teto do Haddad.
Reconstrução do Sul e do Brasil: fim do austericídio!
Pois a profundidade da crise no Rio do Grande do Sul passou a exigir uma conduta distinta no que se refere à liberação dos recursos federais. Mais uma vez deu-se o passe mágica e o inexistente apareceu. Pressionado por Lula, que assumiu o compromisso de colaborar de forma decisiva com o processo de reconstrução do território gaúcho, o Ministro da Fazenda foi obrigado a deixar suas convicções austericidas de lado e construiu planos que envolvem medidas que “abalariam” seu sacrossanto compromisso perante os moçoilos engravatados da Faria Lima. Dentre outras propostas em debate, Haddad aceitou a ideia de uma moratória, oh, santa heresia!, da dívida do Estado gaúcho para com a União pelo prazo de três anos, medida esta que viria acompanhada da suspensão de juros pelo mesmo período.
Apesar de significar um avanço em relação ao comportamento anterior do Ministro, a proposta perde uma excelente oportunidade de direcionar o sentido dos esforços de reconstrução sulina. Não foram apresentadas exigências de contrapartida ao governador Eduardo Leite para que a ajuda federal esteja condicionada a programas governamentais que envolvam redução das desigualdades socioeconômicas, abandono de práticas comprometedoras do meio ambiente da sustentabilidade, medidas estimuladoras da geração de empregos, dentre tantas outras. Não pode o governo federal simplesmente liberar os recursos para que o governo estadual utilize do jeito que quiser. Ou pior, do jeito que vinha conduzindo a política estadual até então.
Esse pode ser o momento para uma virada para a postura de Lula perante a política econômica em geral, e para a política fiscal em particular. Caso opte pelo dito popular de fazer do limão uma limonada, o Presidente deveria abandonar a concordância quase absoluta que vem demonstrando à conduta ortodoxa e neoliberal de seu indicado para a Fazenda. Já houve momentos de divergência de opinião entre eles, como no caso do reajuste do salário mínimo em 2023, depois quando Hadddad impôs a meta de zerar o déficit primário neste ano, em seguida na negativa de concessão de reajuste salarial para os servidores e agora no caso da tragédia gaúcha. O Chefe do Executivo precisa assumir a sua visão e buscar a obediência de seus subordinados.
Lula precisa redirecionar a política econômica
Lula sabe que não se trata apenas da reconstrução necessária do Rio Grande Sul. As pesquisas de opinião mais uma vez têm demonstrado aquilo que os economistas progressistas vínhamos alertando antes mesmo da posse de seu terceiro mandato. A estratégia do Ministro da Fazenda de agradar apenas e exclusivamente à nata do financismo em nosso País tem criado dificuldades mais do que evidentes para a recuperação do desmonte das políticas públicas e para reconstruir tudo o que colocado abaixo desde 2016. Mas para tanto é necessário que o governo abandone o sonho dourado de Haddad com o austericídio.
Na verdade, estão criadas as condições para que Lula anuncie sua intenção de apresentar à população um verdadeiro plano de reconstrução nacional. Assim como ocorreu com o desastre provocado pela combinação perversa dos eventos extremos derivados do aquecimento global e a postura liquidacionista de Eduardo Leite, o Brasil foi vítima de um intento destruidor pela parte das elites vinculadas ao financismo. Para recuperar o necessário protagonismo do Estado, o Presidente da República precisa assumir o comando da área econômica e reorientar seus auxiliares para a busca da estratégia do desenvolvimento social, econômico e ambiental. Ele sabe muito bem que para tanto o tempo é uma variável fundamental. Já se foi 1/3 de seu mandato. O Brasil não pode esperar muito mais pra dar início à necessária mudança de rota na política econômica.
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
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