Assim, o conhecimento e a pesquisa voltados para uma exploração consciente e soberana de tais espaços devem nos assegurar um papel de destaque no debate global a respeito de alternativas para o futuro do planeta.
Por Paulo Kliass – de Brasília
As crises mais recentes que a humanidade tem enfrentado parecem apontar para a necessidade de algumas mudanças significativas nos paradigmas que norteiam o processo civilizatório atualmente. E nesse movimento para a busca de novas referências para as necessárias formas de organização social, econômica, diplomática, cultural e ambiental, o Brasil pode oferecer sua valiosa contribuição. No entanto, para que isso ocorra é fundamental que nosso governo seja ocupado por representantes da civilização e não mais da barbárie, como corre atualmente. Os eventos de 2008 e 2009 associados à grande crise econômica e financeira colocaram em xeque o modelo hegemônico no mundo capitalista, onde a obediência cega aos ditames do receituário neoliberal só fizeram aprofundar a concentração de poder e de riqueza. A partir das dificuldades impostas pela situação inesperada de caos nos mercados globais, percebeu-se a importância de uma ação articulada e coordenada dos Estados para impedir a continuidade da devastação. A espera passiva por uma solução que viesse apenas como resultado da combinação das forças de oferta e demanda talvez provocasse consequências ainda mais trágicas, colocando em risco a própria sobrevivência do sistema. Assim, aquela experiência vivida pelas sociedades do centro do capitalismo levou a uma flexibilização das políticas de austeridade e à recuperação de um certo protagonismo do setor público no âmbito da economia, fato considerado impensável até à antevéspera do início da quebradeira das grandes instituições financeiras nos Estados Unidos. A realidade da dinâmica ditada pelo movimento especulativo dos capitais e a ausência de instrumentos de regulação eficientes levaram a economia global à beira do precipício e as próprias instituições multilaterais, a exemplo do Banco Mundial (BM) e do Fundo Monetário Internacional (FMI), iniciaram um processo de revisão autocrítica das políticas implementadas nas décadas anteriores.Crise 2008/9 e pandemia: oportunidades perdidas
No Brasil, porém, a conjugação orgânica dos interesses do financismo tupiniquim com a ortodoxia ultrapassada do superministro da economia impediram que essas flexibilizações no modelo, levadas a cabo em todos os continentes, fossem adotadas aqui internamente. Na verdade, desde 2015 o País prosseguiu na linha do austericídio em termos da política econômica e com a tentativa tresloucada de destruir o Estado, bem como promovendo o desmonte das políticas públicas. Além disso, a manutenção obsessiva do programa de privatização ia na contramão das necessidades de nossa sociedade e de tudo aquilo que era colocado em prática nos países ditos desenvolvidos. A emergência da pandemia do covid, em 2020, converteu-se em outro desafio para o modelo global, uma vez que os instrumentos necessários para combater o vírus, para desenvolver as vacinas e para implementar medidas do inevitável isolamento social exigiam vultosos aportes de recursos públicos nos países diretamente atingidos, bem como linhas de apoio a mecanismos de ação coordenada e solidária no plano global. Pois também nesse momento a contribuição do Brasil deu-se no sentido contrário à sua tradição e às exigências da conjuntura. O negacionismo do governo Bolsonaro articulou-se à estratégia adotada pelo então presidente norte-americano, Donald Trump. Assim, o isolamento diplomático do nosso país dificultou ainda mais a busca por soluções efetivas de redução da gravidade e minoração das consequências da doença. O Brasil só conseguiu evitar que a tragédia fosse mais acentuada do que os quase 700 mil mortos em razão das iniciativas da oposição para aprovar o auxílio emergencial no Congresso Nacional e pela disposição de atores ligados aos governos estaduais e às entidades de saúde e de pesquisa científica. Caso dependesse exclusivamente do desejo de Bolsonaro e de seus inúmeros ministros da saúde, os efeitos teriam sido ainda mais desastrosos. Mas o fato é que o país perdeu a oportunidade de se apresentar ao mundo com toda a sua experiência passada e bem-sucedida na área da saúde pública, como bem atestam os programas de vacinação por meio do SUS, a campanha contra o HIV, o desenvolvimento de vacinas pelos laboratórios públicos, dentre tantas outras políticas exitosas no setor.A questão energética e a guerra Rússia x Ucrânia: Brasil segue no erro
A guerra entre a Rússia e a Ucrânia colocou as questões relativas à soberania nacional e à busca de alternativas energéticas no centro do debate do futuro da humanidade. Para além da busca urgente de soluções pacíficas para as disputas internacionais, o conflito expôs a precariedade do sistema de abastecimento com base em combustíveis fósseis, como é o caso do petróleo e do gás. Por outro lado, ficou exposta a fragilidade de um modelo concentrador das fontes de tais recursos e a extrema dependência da grande maioria dos países do mundo em relação aos detentores da exploração e do fornecimento de tais produtos. Mas também nesse quesito, percebemos o tamanho do equívoco que foi a alteração da política de preços da Petrobrás, introduzida em 2016 pelo governo Temer & Meirelles, mantida posteriormente por Bolsonaro & Guedes. A política “preço de paridade de importação” (PPI) atrelou as definições de preços internos dos derivados de petróleo à variação dos preços do óleo bruto no mercado internacional. Além dos efeitos nefastos e desnecessários sobre os custos de tais combustíveis, o governo tem levado a cabo uma total inversão na matriz de produção e distribuição dos mesmos. Isso significa que foi abandonada a estratégia de o Brasil buscar sua soberania energética e aprofundada nossa dependência com relação à importação de tais derivados. Por outro lado, o congelamento de despesas públicas para atender às metas da austeridade fiscal tem provocado enorme atraso nos programas de pesquisa e desenvolvimento de energias alternativas. Some-se a tudo isso a intenção de privatizar a Petrobrás, principal empresa estatal de energia no país. Esse quadro mais geral recoloca a questão estratégica da necessidade da inserção do Brasil no cenário internacional em outras bases e a urgência de implementação de um plano nacional de desenvolvimento. Nosso país conta com um potencial representado por duas imensas reservas naturais, as Amazônias verde e azul. Apesar de todo o atraso em relação ao estudo e preservação de tais biomas, existe um grande consenso entre especialistas no mundo todo a respeito da importância dos mesmos para o futuro da sociedade humana. Neles estão presentes indícios da maior biodiversidade existente no planeta.Amazônias verde e azul: o salto para o futuro
O bioma amazônico ocupa atualmente por volta de 4,2 milhões de km2, algo como 40% do território nacional. O reconhecimento de sua importância para o equilíbrio ecológico global tem ganho cada vez espaço. Ali estão presentes uma massa considerável de cobertura florestal de alta complexidade, além de cursos de água estratégicos. Já a Amazônia azul ocupa 3,6 km2 em razão da aplicação de uma faixa de 200 milhas náuticas de nossas costas marítimas. Além disso, o Brasil pleiteia nas esferas internacionais da ONU a ampliação dessa zona econômica exclusiva em mais 2,1 km2. Em ambos os casos existe um vasto campo a descobrir no que se refere a espécies de flora e fauna, bem como as inter-relações entre elas. Assim, o conhecimento e a pesquisa voltados para uma exploração consciente e soberana de tais espaços devem nos assegurar um papel de destaque no debate global a respeito de alternativas para o futuro do planeta. Mas isso vai exigir um grande esforço de coordenação do Estado e um vultoso programa de despesas e investimentos públicos. Esta é uma grande oportunidade para que consigamos dar um verdadeiro salto para a frente, por meio de um avanço necessário nos domínios de ciência, tecnologia e inovação, por exemplo. Guardadas as devidas proporções, esse passo pode ter significado semelhante aos efeitos trazidos pela corrida espacial para economia norte-americana. A criação da Nasa em 1958 e os programas criados e desenvolvidos pelo governo dos Estados Unidos foram fundamentais para o grande salto tecnológico a partir de então. No caso das nossas amazônias verde e azul, trata-se também de um universo a ser desbravado e reconhecido, com consequências para todas as esferas da vida econômica, social, cultural e ambiental. Por inúmeras oportunidades, nossa sociedade esteve face a situações em que o famoso dito “o Brasil é o país do futuro” tinha todas as condições para se se concretizar. Mas alguma maldição não explicada parecia fazer o jogo daqueles que adicionavam a triste frase “e sempre o será”. A exploração consciente, responsável e sustentável das duas Amazônias que temos à nossa disposição pode ser uma das últimas vezes em que o cavalo vai passar selado por aqui. Desperdiçá-lo mais uma vez seria a demonstração de uma enorme irresponsabilidade para com nosso povo e seu porvir.Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
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