“Que tempos são esses em que temos que defender o óbvio?”. A conhecida pergunta atribuída ao dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht (1898 -1956 ) não poderia ser mais atual.
Por Maria Valéria Duarte de Souza - de Brasília
Em um mundo que já vivenciou tantos horrores, seria de se esperar que conquistas civilizatórias elementares não pudessem mais sofrer ameaças. Não é o que estamos assistindo nesses tempos que correm. Movimentos de ultra-direita, alguns de conteúdo claramente fascista, assolam o autoproclamado “mundo livre” onde o ódio e a intolerância saem dos subterrâneos invisíveis da vida social e invadem o território das disputas eleitorais.
Por aqui não é diferente. Da poeira de um tempo nefasto que julgávamos superado, surge um ser obscuro que, nutrido pelo ódio e pelo medo cuidadosamente cultivados pelos espetáculos midiáticos que demonizaram a democracia e todas as conquistas sociais e políticas do povo brasileiro, foi alçado à condição do salvador da pátria da vez.
Este ser, que aqui será chamado de “o inominável”, tem adquirido força eleitoral justamente por propagar sem nenhum pudor, ideias que fariam inveja em agentes da gestapo . Isso é o mais chocante de se constatar. Como, depois de tantas lutas para consolidar a democracia como um valor inegociável na sociedade brasileira, alguém pode considerar aceitável que um elemento que defende a tortura e o assassinato de adversários políticos, o extermínio de pessoas LGBT, que considere inferiores mulheres e pessoas não brancas , e que despreza os pobres, possa sequer pensar em assumir qualquer posição dirigente na vida social e política, ainda mais o cargo de mandatário máximo da nação?
Elites brasileiras
O bonapartismo das elites brasileiras, como bem sabemos, já produziu outros personagens bizarros, cujo despreparo para tratar das grandes questões nacionais estava na razão direta de seu poder midiático. Do homem da vassoura ao caçador de marajás, esses seres saídos das sombras só conseguiram instalar o caos generalizado. Porém, nenhum deles fez da barbárie a sua pauta e do ódio o seu principal atrativo eleitoral. Talvez porque, mesmo em sua arrogância tresloucada não incorreram na ousadia de afrontar o óbvio: não se pode fazer da ameaça a vida das pessoas uma plataforma de governo, tal como hoje este candidato inominável está fazendo e, pasmem, com o beneplácito de muitos que se consideram bons cidadãos e que até se orgulham de se dizerem cristãos praticantes e defensores da vida.
Ao que parece, o óbvio deixou de ser óbvio, pelo menos para uma significativa parcela de eleitores que considera natural ou “engraçado” que um candidato em um palanque, num espaço público e fazendo um gesto de quem porta uma arma de grosso calibre, diga que vai fuzilar militantes de um partido adversário.
Quem considera coisas assim uma inocente brincadeira vinda de alguém que apenas não tem compromisso com o “politicamente correto”, não sabe que monstros poderão surgir daí, uma vez que a violência quando permitida e incentivada possui um incontrolável poder de disseminação, o que pode assumir dimensões catastróficas um uma sociedade já profundamente violenta como a nossa.
É bom lembrar também que foi graças ao “politicamente correto” tão desdenhado por alguns, que direitos fundamentais foram conquistados, como por exemplo, o direito das pessoas não sofrerem agressões , seja por meios explícitos como os espancamentos, seja por meio de “piadinhas” desrespeitosas por conta de sua orientação sexual, a corda pele, gênero ou condição social. O “politicamente correto” gostem ou não esses saudosos de tempos em que constranger e humilhar pessoas era uma espécie esporte nacional, cumpre um papel civilizatório pois desnaturaliza essas formas seculares de constrangimento e humilhações as quais foram submetidos aqueles e aquelas considerados inferiores pela lógica patriarcal escravista.
Desse modo, defender direitos sem os quais são impensáveis padrões mínimos de civilidade é defender o óbvio e foi em defesa desse óbvio que, em todo o Brasil, milhões de mulheres e homens saíram às ruas no último sábado , 29 de setembro. Um gigantesco movimento que, a princípio, foi convocado como forma de prestar solidariedade às mulheres que se organizaram em uma rede social para expressar sua rejeição ao candidato inominável, e que, por isso sofreram por parte dos seus apoiadores, violentas agressões. Porém, esse movimento que conservadores de todo tipo tentaram desqualificar por ter sua organização vinculada a movimentos feministas (como se isso fosse motivo para desqualificação), ganhou repercussão e adesão, tornando-se uma manifestação contra o fascismo que ronda nosso país.
Na efervescência de um período eleitoral extremamente tenso e polarizado, esse movimento levou às ruas pessoas de diversos segmentos sociais, de vários partidos ou sem qualquer vinculação partidária, oferecendo um exemplo do poder unificador de uma questão cuja relevância transcende as pautas sociais e políticas específicas, passando uma mensagem clara : em um eventual segundo turno das eleições presidenciais que se avizinham, no enfrentamento do fascismo não haverá espaço para tergiversações ou vaidades pessoais. Será preciso a união de todas as forças democráticas e progressistas, pois o que estará em jogo não será a eleição de um candidato ou partido político mas o confronto entre a civilização e a barbárie. Entre esses extremos, o momento histórico exigirá de todas e todos que temos um real compromisso com a democracia, a coragem de defender o óbvio.
Maria Valéria Duarte de Souza, é graduada em Serviço Social, com especialização em Planejamento e Gestão e mestrado em sociologia, e militante do PCdoB no Distrito Federal.