Xadrez tridimensional na União Europeia
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Sexta, 06 de Junho de 2014 às 10:17, por: CdB
Na antiga série Jornada nas estrelas aquele personagem marciano de orelhas pontudas às vezes jogava um tal de “xadrez tridimensional”, que, aparentemente, só ele entendia. Havia três tabuleiros transparentes e superpostos , presos a uma coluna, e as peças se movimentavam nestes andares aparentemente incomunicáveis.
A situação da política europeia, nesta quinta-feira, e para o fim de semana, está idêntica. Há vários tabuleiros sendo jogados simultaneamente pelas mesmas peças, e os liames assim como a falta de comunicação entre eles é enorme.
No primeiro tabuleiro, está a reunião do G7, ex-G8. Na verdade, a exclusão da Rússia deste organismo cada vez menos orgânico contribuiu parta torná-lo mais anacrônico do que vinha sendo há tempos. Está se transformando numa mera caixa de ressonância da pressão dos EUA para restabelecer um “cerco amigável” à Rússia, encabeçado pela sede da OTAN por bases próximas à fronteira de países limítrofes com ela.
Mas lá estão Obama e Merkel, levantando o dedo e ameaçando Moscou com ‘novas represálias’ caso Putin não dome os separatistas ucranianos (tarefa nada fácil, mesmo para quem já dominou tigres siberianos com o mero olhar) e impeça infiltrações pela fronteira – coisa que Putin menos deseja permitir. O Japão, diante de tudo, mantém um silêncio obsequioso, assim como o Canadá, enquanto os outros países do seleto e decadente clube olham de modo cético para seu presidente norte-americano (talvez fosse melhor dizer czar...), pois desejam tudo menos ter de enfrentar um corte no fornecimento de gás pela Gazprom.
Porém ainda hoje, nesta quinta-feira, devem ocorrer dois jantares no Palácio dos Champs Elysées, em Paris. E o presidente François Hollande terá de comparecer aos dois. No primeiro receberá Barack Obama; no segundo, Vladimir Putin. Haja estômago! Tudo para não melindrar os dois presidentes, cujas relações andam meio estremecidas com os acontecimentos na Ucrânia onde, aliás, a matança continua: segundo denúncias dos separatistas, 300 mortos nos últimos dias, contra apenas duas dos soldados de Kiev. Se isto é um “combate”, como insiste a mídia ocidental, lembra aqueles da Guerra do Vietnã, em que milhares de vietcongs morriam contra algumas dezenas de sulvietnamitas e uns poucos norte-americanos.
De qualquer modo, amanhã, 06, comemoração dos 70 anos do Dia D, todo mundo se encontra, inevitavelmente: Putin, Obama, Hollande, Cameron, talvez Merkel – que de qualquer modo receberá Putin em visita. Não se sabe ainda quantos cafés-da-manhã em separado serão necessários para acomodar todo este pessoal, que talvez prefira tomar as refeições em seus quartos para, de novo, evitar melindres.
Mas isto nos leva ao segundo tabuleiro, em que alguns destes mesmos jogadores estão jogando um outro jogo, ao mesmo tempo em que se movimentam no primeiro. Trata-se da eleição – ou escolha – do presidente da Comissão Europeia, o cargo executivo mais importante da U. E. No momento, há apenas um candidato: Jean-Claude Juncker, o ex-primeiro-ministro de Luxemburgo, do Bloco Conservador. Bem, há também Alexis Tsipras, da Esquerda, e Bové, dos Verdes, mas sem chances.
Acontece que Juncker conseguiu o milagre de tornar-se ao mesmo tempo o candidato da situação e da oposição, um feito parecido ao de caminhar sobre as águas. Jucnker foi lançado antes da eleição para o Partlemento Europeu, por Angela Merckel, como candidato ao cargo. Seu adversário era Martin Schulz, do SPD alemão. O Bloco Conservador teve o maior número de cadeiras – sem maioria absoluta. Schulz, numa manobra que escandalizou os Verdes (acho que esperavam uma aliança com eles), apoiou Juncker, reconhecendo que era “direito” deste tomar a iniciativa.
Ocorre que este gesto provocou outro: Juncker convidou Schulz para ser seu vice na Comissão, numa reuniãoi feita na sede do Parlamento. Isto implicou uma reviravolta na candiatura conservadora, pelo menos em seu significado. Ocorre que tradicionalmente é o Conselho Europeu, formado pelos chefes de estado, que indica o candiato ao Parlamento, que aceita ou não o nome. Agora a coisa (o termo é bem empregado) ficou assim: um acordo no Parlamento indicou não apenas um, mas dois nomes, presidente e vice, ao Conselho. Merkel ficou furiosa. Idem David Cameron, que, por alguma razão, não engole Juncker.
Cameron agora ameaça antecipar um prometido plebiscito sobre a permanência do Reino Unido na U. E., previsto para 2017. Se ele fosse realizado agora, seria provável a vitória da saída – ao mesmo tempo em que o Reino Unido, num tabuleirinho ao lado, se vê sob a ameaça do plebiscito sobre a independência da Escócia, em setembro. Juncker continua fazendo campanha, apresentando-se como candidato do Parlamento e dos eleitores europeus. Merkel tenta recuperar a iniciativa, sublinhando a prerrogativa do Conselho na indicação do candidato, opondo-se a este primado do Parlamento, que ganhou pontos e poderes. Este primado seria um imponderável fator democrático na Corte europeia.
Qual a importância disto tudo? Além do cargo em si, há o terceiro tabuleiro, o do Banco Central Europeu. Reunido Na manhã desta quinta-feira, o BCE adotou medidas drásticas que tiraram o fôlego do establishment orotodoxo e hegemônico na mídia e na esmagadora maioria dos governos e universidades do continente. Baixou a taxa de juros para 0,15% e adotou a medida nada ortodoxa de criar uma “taxa de juros negativa”, de – 0,1% para depósitos em suas contas. Quem deposita no BCE? Outros bancos. Por que depositam?Para obter garantias de novos empréstimos. Esta “taxa negativa”, eufemismo para um imposto de cobrança, significa que de cada euro depositado, apenas 90 centavos serão recuperáveis. Ou seja, a medida visa estimular que os bancos retenham capitais e os apliquem em créditos, aquecendo a economia, provocando até, no dizer deo presidente do BCE, Mario Draghi, “alguma inflação”, na visão dele a única coisa que pode salvar a Europa da deflação que ameaça submergir o continente já submerso em alguma fossa mais abissal ainda.
Não deu ainda para saber como foi o jogo no Conselho do Banco, mas pode-se imaginar que o movimento de Draghi – motivado por um recuo da taxa anual de inflação prevista para 0,5% em maio e o crescimento da economia europeia de apenas 0,2% no primeiro trimestre de 2014 – tenha encontrado a oposição ou pelo menos o esgar contrariado de Jens Weidman, o ultra-ortodoxo diretor o Banco Central Alemão, ao mesmo tempo mentor e ponta-de-lança de Merkel. Ocorre que quem aponta o diretor do BCE é o presidente da Comissão Europeia – e por isso o jogo em torno da cadeira de Juncker, e sobre a quem ele deverá lealdade, tornou-se tão crucial, além dos envolvimentos que ela por si mesma provoca.
A analogia com os tabuleiros do Jornada nas estrelas permence válida. Com uma única diferença, em termos de analogia. Na série de TV os patamares eram transparentes. Já neste...
Flávio Aguiar, é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.