Weffort justifica massacre dos índios
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Domingo, 09 de Novembro de 2014 às 15:32, por: CdB
Quem lê as declarações de Weffort, sem saber quem é o autor, pode até pensar que ele é um pistoleiro sanguinário, um ruralista insensível e truculento, talvez um coronel de barranco ou um ignorantão desinformado, bronco e obtuso.
Ledo engano! Ele é refinado, viajado, escolado, doutor em Ciência Política, ex-professor da USP e da UFRJ, ocupou o cargo de secretário-geral do PT e foi até ministro da Cultura do governo FHC. Já escreveu vários livros. Acaba de publicar o último - "Espada, Cobiça e Fé - As Origens do Brasil", que tem a pretensão de desenhar um retrato do nosso país.
Por isso, com um currículo como esse, por se tratar de um autodeclarado explicador do Brasil, são ainda mais chocantes as declarações de Francisco Weffort à Folha de São Paulo, numa entrevista ao jornalista Cassiano Elek Machado, publicada no último dia 24 de dezembro.
Indagado sobre o papel dos bandeirantes na história do Brasil, Weffort respondeu com a "objetividade" e a "neutralidade" do cientista:
- Comecei a fazer o livro preocupado com este tema. Sei que os bandeirantes foram brutais e violentos, mas conquistaram esta terra. Todos temos uma dívida com eles. Então é preciso entendê-los.
Ou seja, Weffort não é ignorante, ele confessa que sabe muito bem que as bandeiras eram expedições armadas que invadiam aldeias e queimavam malocas para aprisionar índios e vendê-los como escravos. Sabe que os bandeirantes formavam uma espécie de Esquadrão da Morte Rural. Conhece o testemunho de um dos integrantes da expedição chefiada por Raposo Tavares, em meados do séc. XVII, ao rio Madeira, onde viviam cerca de 150.000 índios. O bandeirante revelou ao padre Antônio Vieira seu modus operandi:
“Nós damos uma descarga cerrada de tiros: muitos caem mortos, outros fogem. Invadimos, então, a aldeia. Agarramos tudo o que necessitamos e levamos para as nossas canoas. Se as canoas deles forem melhores que as nossas, nós nos apropriamos delas, para continuar a viagem”.
Francisco Weffort sabe tudo isso porque depois que deixou o cargo de ministro da Cultura mergulhou nos arquivos e pesquisou a documentação do período colonial para esboçar um perfil do Brasil, pretensiosamente "na mesma linha de pensadores como Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) e Gilberto Freyre (1900-1987)", segundo a Folha, que informa na abertura da entrevista: "Francisco Weffort passou os últimos anos vivendo no século 16".
Portanto, nesse tempo todo em que morou no período colonial - e pelo visto permaneceu por lá - o ministro foi vizinho de jesuítas como Jerônimo Rodrigues, que depois de presenciar o assassinato de índios velhos, enfermos e crianças, chamou os bandeirantes de bandidos:
“Nenhuma pessoa, que não tenha visto com os seus próprios olhos tais horrores abomináveis, pode imaginar coisa igual. A vida inteira desses bandidos consiste em ir e vir do sertão, indo e trazendo cativos com muita crueldade, mortes, saqueios e depois vendendo-os como se fossem porcos do mato”.
- Será que tais horrores podem ser compensados pela consideração controvertida que, graças aos bandeirantes, as terras devastadas pertencem hoje ao Brasil?
Quem fez essa pergunta, com muita propriedade e senso crítico, foi o historiador Capistrano de Abreu (1853-1927).
Francisco Weffort, ex-ministro da Cultura e atual explicador do Brasil, mesmo sabendo o que sabe, se apressa em respondê-la afirmativamente, elogiando a "coragem espantosa" dos bandeirantes. Quanto à matança generalizada de índios, Weffort justifica, argumentando que os bandeirantes faziam "parte de uma cultura na qual a violência na vida cotidiana e o saqueio na guerra eram recursos habituais".
Na opinião de Weffort é preciso "entender" os bandeirantes para, dessa forma, podermos pagar a dívida que temos com eles. Ou seja, "entender" não apenas no sentido de compreender os mecanismos que permitiram a existência deles, mas no sentido de que devemos julgá-los historicamente com condescendência. Eles foram efetivamente bandidos, mas não podem ser condenados pelo tribunal da História porque, afinal, "conquistaram esta terra", e eu, tu, nós, "todos temos uma dívida com eles".
Cabe a pergunta: nós quem, cara pálida? Me inclui fora dessa. Qual a dívida que os índios têm com os bandeirantes? Não seria o contrário?
Para Weffort, hoje com 75 anos, os bandeirantes são os “desbravadores do território nacional” e “heróis da pátria”. Da mesma forma que ele nos convida a "entender" os bandeirantes, nós convidamos o leitor a "entender" Weffort, que frequentou museus e estudou numa escola ufanista, cujas narrativas aboliram os índios da formação do Brasil, considerando-os minorias inexpressivas.
Imagine Weffortzinho, quando criança, visitando o Museu Paulista erguido lá, nas margens plácidas do Ipiranga. Ele contempla aquelas esculturas gigantescas de mármore dos bandeirantes, apresentados como heróis nacionais: Raposo Tavares, Fernão Dias e todo o Esquadrão da Morte.
No interior, vitrines mostram dezenas de estojos contendo cachinhos e mechas de cabelos de senhoras da Casa Grande, mas não tem nada da senzala, nem sequer um pentelho de um índio ou de um negro. Apagaram o índio na cabeça do Weffortzinho e o Weffortzão aceitou o apagamento sem discussão.
Essa foi a fonte onde bebeu Weffort, o explicador do Brasil. Se ele tivesse recebido um milhão de dólares para escrever essa besteira, a gente podia até discordar dele, mas era possível "entendê-lo", assim como ele "entendeu" os bandeirantes. Haveria uma motivação econômica. Mas com a modesta bolsa que recebeu da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo às Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro para escrever esse livro, fica difícil aceitar que ele invada corações e mentes, expandindo preconceitos tão surrados, que já foram desmontados pela historiografia brasileira.
Por que não fazer um esforço, uma vez por todas, para "entender" também a "coragem espantosa" dos índios e o papel deles na História do Brasil? O americanista espanhol Jimenez de la Espada, que foi diretor do Archivo General de Indias, en Sevilla, com ironia e propriedade criticou os brasileiros, por haverem aceitado, passivamente, sem questionamento, a versão que os portugueses deram da história colonial:
"Los portugueses han tenido la doble fortuna de no tener un padre Las Casas y de que los brasileiros hayan hechos suyos, sin discutirlos, los hechos de aquellos hombres que a todo costo les dieron la opulenta y anchisima pátria".
É isso. Com um explicador do Brasil como esse, não vamos muito longe.
José Ribamar Bessa Freire é professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio), onde orienta pesquisas de doutorado e mestrado e da Faculdade de Educação da UERJ, onde coordena o Programa de Estudos dos Povos Indigenas.coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO) e edita o site-blog Taqui Pra Ti. Tem mestrado em Paris e doutorado no Rio de Janeiro. É colunista do novo Direto da Redação.
Direto da Redação é editado pelo jornalista Rui Martins.