Respirei aliviado no domingo (27/07). O motivo foi a leitura de reportagem no Estadão sobre a prefeitura de Porto Alegre e os meninos de rua. O objetivo da formal da reportagem foi o de construir duas manchetes que enquadrassem o trabalho da prefeitura petista sob o signo da inutilidade, da ineficiência e mesmo da iniqüidade.
A primeira manchete era a da primeira página: "Em Porto Alegre, PT não tirou os meninos da rua". Primeiro parágrafo do texto: "Em 14 anos de gestão em Porto Alegre, as sucessivas prefeituras do PT montaram um programa que reúne informações detalhadas sobre meninos de rua. Sabe-se de tudo sobre eles, só não se consegue tirá-los da rua".
Logo a seguir, acrescenta-se que os meninos se ressentem de meios para se tornarem independentes ("andar com as próprias pernas") e vem a informação vaga, mas de propósito político certeiro: "Em Curitiba, administrada pelo PFL, a situação é um pouco melhor".
Quer dizer: o incauto leitor, ou seja, diga-se de passagem, aquele do "me engana que eu gosto", fica com as seguintes ruminações:
1- Haver [ainda] meninos da rua é um problema de Porto Alegre.
2-Este problema "daquela cidade que elege o PT há catorze anos" se deve exatamente a isso, a ter eleito quem elegeu, e não o "um pouco melhor" PFL, da "um pouco melhor" Curitiba, que na matéria fica caracterizada como "um pouco melhor" por ter preferido um paradigma conservador.
3-O problema de Porto Alegre e o do PT é que este faz o secundário (saber tudo sobre os meninos de rua) e não o principal (tirá-los da rua).
A construção política se transforma em ideológica se o incauto do "me engana que eu gosto" vai às páginas internas. A manchete garrafal do caderno em que se encontra a matéria viaja do descaso e do equívoco veiculados na primeira página, para uma forma de incúria que beira a acusação de crime: "PARA OS MENINOS DE RUA, RUA". Quer dizer, é como se fosse então uma opção deliberada mantê-los na rua, diante da inépcia, da incapacidade ou outra coisa do tipo.
A matéria expõe, é bem verdade, a complexidade do problema. Mas a marca da tração ideológica permanece, apontando nas raízes da questão as opções de base da administração:
"Ninguém nega que o problema seja espinhoso. Mas os resultados parecem melhores em Curitiba, cidade de população e perfil sócio econômico semelhante, mas gerida, ao longo dos últimos 14 anos, por um estilo diferente de administradores, mais preocupados com técnicas de planejamento e gestão do que com participação popular e exclusão social". Ou seja, alevantam-se duas armaduras brilhantes do armário da "modernidade", "técnicas de planejamento" e "gestão", contra essas velharias de baú, "participação" e "exclusão". Graves problemas sociais são assim reduzidos a uma manipulação retórica e semântica.
Depois vêm observações do tipo: o prefeito Jaime Lerner (de Curitiba, PFL, 1989 - 1992) "chegou a anunciar que havia zerado o número de meninos de rua, embora os moradores acreditassem que ainda havia alguns na época". Em todo caso, fica-se sabendo de um esforço semelhante ao de Porto Alegre: cadastrar os meninos de rua, saber quem são, de onde vem, porque vem, etc.
Em Curitiba, de acordo com a Fundação de Ação Social da cidade, há 123 meninos de rua. Em Porto Alegre, de acordo com a prefeitura, há 366. Destes, entre 250 e 300 moram na rua. Os outros "ficam" na rua.
A questão é por demais complicada. Estudos recentes desenvolvidos na Escola de Enfermagem da Usp, em parte num trabalho em parceria com a Pastoral da Criança e do Adolescente, mostram que mesmo quando situados em famílias alternativas, e mesmo quando bem adaptados nesta condição, meninos de rua voltam periodicamente à rua. Por quê? Uma hipótese viável é a de que "a rua" tenha ficado indelevelmente ligada à própria identidade. Esses meninos vêm em geral de situações de "fragmentação" ou de "destruição" da própria identidade: lares desfeitos, maus tratos, e
Rio de Janeiro, 22 de Dezembro de 2024
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