O Congresso merece ser qualificado como incompetente e patife. Um enxame de partidos políticos entrega-se a práticas as mais despudoradas
Por Maria Fernanda Arruda - do Rio de Janeiro: Como consenso, viu-se no Congresso eleito em 2014 um conservadorismo que o levaria sem dúvida à incompetência, situação definitivamente agravada com a eleição de Eduardo Cunha para a Presidência da Câmara dos Deputados, quando passou a somar-se a patifaria. Porem,a reprovação unânime volta-se em seguida contra nós, os que reprovamos, pois fomos também nós que os elegemos. Uma contradição incômoda, a exigir explicação. O povo não sabe votar? A frase, tantas vezes repetida, como desabafo dos que se desagradam com as urnas, preconceituosamente elitista, não explica coisa alguma. Ora, se os candidatos são indicados por partidos políticos, aos eleitores não é dada mais do que uma opção dirigida e, isso sendo lembrado, poderíamos transferir a responsabilidade pelo resultado desastroso aos políticos e seus partidos. Não existindo no Brasil a figura do “político independente”, todo cargo político exige uma filiação partidária: os partidos são o alfa e o ômega desse mundo. Mas a importância maior do partido político ficou surpreendentemente compactada em um único artigo 17 da Constituição, que concede a ele liberdade para criar-se fundir-se, incorporar-se e extinguir-se. Ou seja: o fantasma da Ditadura, que sufocou os partidos, apavorava ainda aos feitores da Constituição Cidadã, que assim optaram pela prática do extremo oposto, dando a eles liberdade de ação sem limites e sem compromissos. Antes de qualquer outra crítica, será preciso ter em conta a existência no Brasil a parafernália de 35 agremiações que gozam do status de partidos, compondo o mecanismo que transforma os políticos em negociantes que se organizam sem pudores ideológicos em grupos defensores de interesses econômicos de grupos, por outra parte compondo-se como força de pressão capaz de chantagear a Presidência da República. O enredo lastimável da vida política brasileira compõe-se enfim em torno do cenário de isolamento da Brasília, que dá aos seus figurantes a certeza de uma imunidade, entendida indevidamente por eles como de direito constitucional. Um senador da República permite-se atuar numa CPI, assessorado por uma “advogada” que é atriz : perdoado pelo espírito corporativo do Congresso, Ciro Nogueira preside atualmente o quarto partido político em tamanho, o PP. Às práticas de uma sexualidade lúdica soma-se o ritual religioso neopentecostal, amparado por uma das bancadas mais atuantes da Câmara. Claramente, ninguém pretende de fato ser encarado a sério: os pudores, tendo se feito falsos, passaram a ser descartados. E basta isso para que haja a certeza daquilo que foi afirmado pela candidata Dilma Rousseff: a reforma política é urgente e ela só se faz com uma nova Constituição. E é por esse caminho que se desvenda o mistério: não se pretende simploriamente retirar dela o mandato do povo, pois o que se faz é impedi-la de fazer aquilo que ela sabe necessário fazer. Vem sendo cada vez mais imposto a ela integrar a quadrilha montada e consolidada mafiosamente nos grandes interesses econômicos, renunciando ao seu último traço revolucionário. Até agora, e por isso mesmo, o que houve, reconheçamos, foi um grito tímido: criou-se a lei que proíbe às empresas o financiamento de campanhas políticas e com ela estamos todos satisfeitos, acreditando piamente que, numa sociedade capitalista, como é a nossa, uma lei possa ter a força que discipline a intervenção do capital no processo das decisões políticas. Basta um único exemplo para evidenciar a falácia: o Instituto Millenium não é atingido pela lei nova, mas reúne de maneira organizada as forças do sistema financeiro e os controles da mídia capazes para até mesmo eleger um Presidente da República (a mídia já elegeu Collor de Melo e FHC). O mandonismo dos antigos senhores de engenho tornou-se direito constitucional com a Primeira República descentralizadora, que atendia aos interesses dos fazendeiros de café e ao mesmo tempo preservava as velhas oligarquias dos Malta, dos Rosa e Silva, dos Seabra e dos Acioly. O Estado Novo de Vargas promoveu a centralização, derrubou famílias senhoras do poder e mando, logo depois surgindo os novos “donos do Poder”: Amaral Peixoto, Benedito Valadares, Juracy Magalhães. Esse mecanismo, que assegura o poder às elites, voltaria a gozar de prestígio constitucional em 1946, quando a Constituição então promulgada consagrou o pacto entre as elites progressistas, cada vez mais identificadas com o capitalismo internacional, e concentradas nos Estados mais desenvolvidos, e a elites oligárquicas, senhoras dos Estados mais pobres e concentrados no Norte e Nordeste. Esse pacto teve como objetivo a preservação da hegemonia política, que começava a ser ameaçada pela urbanização, com a industrialização e fortalecimento do “trabalhismo” de Vargas. Minas Gerais lidera as unidades da Federação que ainda vivem politicamente como “Estado Cartorial”, somando-se a Bahia e todo o Norte e Nordeste. E esse anacronismo tem a sustentação da Constituição de 1988, que manteve o mesmo modelo de Poder Legislativo que vai assegurando o controle político das elites através dos tempos. A Constituição (artigo 45) estabelece que o número de deputados será proporcional à população (o que é o lógico, pois os deputados são delegados do povo), mas ajustados, de forma a que nenhum Estado tenha menos de oito ou mais de setenta deputados (o que não objetiva a representação dos mais pobres, concentrados no Nordeste, mas o que se constitui na grande armadilha). Esse ajustamento é que assegura a conservação do esquema de barganhas alimentadas com o poder e recursos de um “Estado Cartorial”. Para que se complete o mecanismo que assegura a apropriação do Poder pelas elites, o Senado Federal, que é composto por 81 senadores, 3 de cada Estado. A Ditadura, zelando pela hegemonia das elites, transformou antigos territórios em Estados, esforço completado com as divisões impostas a Mato Grosso e Goiás. Tem-se assim um acréscimo de 18 senadores, na sua maioria elegíveis por colégios eleitorais onde a política de clientela é a prática dominante, permitindo absurdos, como a senatoria que o Amapá concede a Jose Sarney, o senhor do Maranhão. Sem exageros: é a verdade! O Congresso merece ser qualificado como incompetente e patife. Um enxame de partidos políticos entrega-se a práticas as mais despudoradas. A Presidência da República, em sua luta de vida ou morte, cede e faz negócios. Mas não fiquemos nos mesmos nomes que se repetem num rosário de mistérios repetidos, todos, por igual, dolorosos. O grande problema não está em nomes individuais, mas está na falta de ordem jurídica , pois o que nos falta é uma Constituição a ser respeitada, sabida e praticada. A Constituição Cidadã foi feita pelos políticos da Ditadura, para servir aos interesses dos que a quiseram manter, apenas eliminando-se a presença dos generais. Lula foi a única lucidez a apontar para isso, no exato momento em que ela nascia, o que convenientemente ele já esqueceu. Dilma Rousseff está proibida de repetir a sua proposta. Não é aos partidos políticos e aos seus personagens que terão interesse na alteração do modus vivendi que atende aos senhores do poder e lhes dá riqueza e mordomias nababescas. De onde surgirá a voz clamante, a enfrentar o deserto para povoa-lo com o povo? O que é certo: o Brasil não suportará por muito mais tempo a decadência do que se faz hoje, como se isso fosse política. Quem, de fato e com firmeza, quer uma Constituição que permita uma nova ordem política, definitivamente democrática? Até o momento, apenas Dilma Rousseff apontou nessa direção. O PT sempre manteve a visão curta que o leva a tornar o financiamento de campanhas o único mal a ser consertado. Com ele, poderia concordar o próprio PSDB e todas as outras forças políticas que vivem em função do anacronismo dos “currais eleitorais”. Uma simples mas atenta leitura da atual Constituição mostra que é preciso muito mais, o que exige que se faça uma Constituição de olhos voltados para o futuro do Brasil. Mas ela tem sido demais citada, sem nunca ser lida. Maria Fernanda Arruda é escritora, midiativista e colunista do Correio do Brasil, sempre às sextas-feiras.Um Congresso incompetente?
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Sexta, 29 de Janeiro de 2016 às 10:17, por: CdB