A nomeação do primeiro-ministro de Portugal, Durão Barroso, para presidente da Comissão Européia interroga duplamente a qualidade da democracia em que vivemos. A primeira interrogação pode formular-se assim: como é que na democracia européia se constrói o mérito democrático? A nomeação de Durão Barroso constitui uma promoção política que ocorre na seqüência da pesada derrota eleitoral da coligação governamental por ele presidida, uma derrota em que terá pesado a sua participação, na qualidade de hospedeiro açoriano dos invasores do Iraque, num dos atos mais divisionistas da unidade européia das duas últimas décadas.
Aos portugueses não escapará que esta dissonância entre mérito e recompensa se deve ao fato de estar menos em causa o mérito de quem é nomeado do que a conveniência de quem nomeia. Não é a primeira vez na história que Portugal sai "beneficiado" das disputas entre as grandes potências européias. No final do século XIX, na Conferência de Berlim, Portugal pôde manter as suas colônias africanas apenas porque as grandes potências ― as mesmas que nomeiam agora Durão Barroso: Inglaterra, França e Alemanha ― não se entenderam em como dividir entre si as colônias portuguesas.
Do mesmo modo agora, um presidente da Comissão politicamente enfraquecido e oriundo de um pequeno país a braços com uma profunda crise econômica faz antever uma gestão dócil mantida nos estreitos limites do consenso entre as grandes potências européias. Alguns comentaristas políticos, acometidos de nacionalismo saloio, vêem nesta nomeação vantagens para o país sem nunca se perguntarem pelos seus inconvenientes para a Europa.
A segunda interrogação diz respeito ao modo como vai ser resolvida a crise política decorrente da demissão do primeiro-ministro. Estamos perante um dos testes mais sérios à qualidade da democracia portuguesa dos últimos trinta anos. Os portugueses elegeram um primeiro-ministro que optou por uma fórmula de governo, a coligação, de que assumiu plena responsabilidade política. Nas recentes eleições européias, cerca de dois terços dos eleitores manifestaram a sua reprovação desta fórmula ou da sua execução.
Se o primeiro-ministro decide furtar-se à responsabilidade de se confrontar com estes resultados, aceitando uma promoção que lhe cai do céu, só os portugueses poderão decidir, em eleições, as conseqüências políticas desse ato. E não se invoque o argumento da estabilidade contra a realização de eleições porque não há instabilidade maior em democracia do que a que resulta da revolta dos cidadãos ante a irrelevância do seu voto. Esta é a hora de os movimentos sociais mostrarem que a luta por uma sociedade mais justa passa por uma democracia representativa minimamente digna.
Os partidos da oposição devem manifestar-se em uníssono e com veemência a favor de eleições antecipadas. Seria lamentável se algumas facções do PS, devoradas pelo desejo de derrotar Ferro Rodrigues no próximo congresso, dessem a entender a sua anuência a qualquer outra solução, pondo, assim, os seus pequenos interesses acima do interesse do país. Se o presidente da República se deixou vincular ao compromisso de não convocar eleições, do que duvido, compete ao PSD desvinculá-lo em nome do interesse nacional.
De que estranha maneira terminaria o presidente da República o seu segundo mandato se o terminasse legitimando um governo não eleito, dominado por dois homens de direita, um, Paulo Portas, sem peso eleitoral (como decorre das eleições européias), e outro, Santana Lopes, sem medida eleitoral (porque nunca sujeito a eleições nacionais), dois homens de cuja instabilidade tudo há a esperar e em quem, portanto, não se pode confiar! A herança de Jorge Sampaio ficaria irremediavelmente manchada.
Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal)