Rio de Janeiro, 21 de Dezembro de 2024

Os piqueteiros enterram o peronismo

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Segunda, 23 de Fevereiro de 2004 às 16:49, por: CdB

As manifestações dos piqueteiros argentinos voltaram a demonstrar que eles vieram para ficar na paisagem social desse país. Surgidos na explosão popular provocada pelo fim violento do Plano Cavallo, de paridade entre o dólar e o peso, e a conseqüente queda brusca do nível de vida da população, tiveram nas demonstrações de dezembro de 2001 seu momento mais alto, quando foram finalmente responsáveis pela queda do governo de Fernando de la Rúa com suas espetaculares manifestações, que paralisaram o país.

O primeiro ano do governo Kirchner representou, para os argentinos, a recuperação da esperança de que o país pode sair da crise a que foi projetado pelo governo Menem. A economia voltou a se recuperar, os altos índices de desemprego baixaram um pouco, o ânimo dos argentinos melhorou.

Porém, os piqueteiros demonstraram que não são um movimento ocasional, uma explosão momentânea, que passa quando o momento mais duro da crise parece haver sido superado. Apesar de todas as dificuldades, conseguiram mobilizar 50 mil manifestantes na quinta-feira, 19 de fevereiro, cortar mais de 50 cruzamentos de ruas e avenidas e fazer tudo sem nenhum tipo de violência ou de enfrentamento com a polícia.

A manifestação, que terminou com um comício em frente à Casa Rosada, no centro de Buenos Aires, foi considerada um sucesso, depois das dificuldades de repetir manifestações de grande porte no primeiro e no segundo aniversário das concentrações de dezembro de 2001. Demonstrou que a capacidade de iniciativa e de mobilização do movimento persiste, na luta, desta vez, contra a suspensão de 250 mil auxílios a desempregados, assim como contra a nova reforma trabalhista que o governo Kirchner encaminhou ao Parlamento, em substituição àquela feita pelo governo de la Rúa, desmascarada como tendo sido aprovada com a compra de parlamentares.

Mas o governo também cantou vitória. Disse que sua tática de evitar a repressão, para que o movimento não se multiplique e catalise a simpatia da população, deu certo, que o movimento contava mobilizar mais gente do que efetivamente acabou conseguindo. Mas principalmente o governo conta com a ruptura da aliança entre os piqueteiros - compostos basicamente por setores proletarizados, afetados direta e bruscamente pela crise, provenientes da classe operária ou da classe média empobrecida - e a classe média. Esta não cansa de manifestar seu descontentamento com os problemas causados pelos piqueteiros ao trânsito com seus cortes de ruas e avenidas. Mas provavelmente essa atitude reflete também como estes setores foram mais diretamente beneficiados pela melhoria da situação econômica, distanciando-se da situação de abandono em que seguem os piqueteiros e os setores pobres da população em geral.

Mas, de qualquer forma, o movimento de massas argentino mudou de forma irreversível. Os sindicatos peronistas perderam aparentemente de forma definitiva o lugar central que ocuparam no espectro político e social da Argentina durante cerca de 6 décadas, deixando um espaço vazio, que os piqueteiros tratam de ocupar, esperando que outras novas forças possam igualmente fazê-lo. A Argentina chega ao pós-peronismo pelas mãos dos piqueteiros, anunciando um país que emerge da crise com uma paisagem social e cultural nova, à espera das novas forças políticas que possam representar essa sua nova fisionomia.

Emir Sader, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), é coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj e autor, entre outros, de "A vingança da História

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