Rio de Janeiro, 30 de Outubro de 2024

O colecionador de jornais

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Segunda, 03 de Novembro de 2014 às 13:00, por: CdB
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Colunista Bessa Freire conta a história do gringo, colecionador inveterado, que encheu sua casa de jornais velhos já lidos
Ninguém jamais saberá porque o velho Edmundo Busby colecionava jornais, nem exatamente quando essa mania começou. O certo é que, em vez de descartá-los depois de lidos, como todo mundo faz, ele os guardava, empilhados, nos cômodos de sua casa no Beco da Indústria, 135, bairro de Aparecida, Manaus. Fez isso diariamente, religiosamente, durante algumas décadas. Quando morreu, no final dos anos 50, na casa entulhada não havia espaço nem para o caixão. Uma vizinha caridosa, dona Fanchete, que morava em frente, organizou o velório e sugeriu que o defunto fosse deitado sobre pilhas de jornais. Um deles lhe serviu de mortalha: era um exemplar raro do The Porto Velho Times, de 1909, distribuído no acampamento dos gringos que deu origem à cidade de Porto Velho (Rondônia). Este exemplar chegou às mãos de Edmundo Busby em Santo Antônio, no rio Madeira, onde ele vivia naquele 4 de julho de 1909, depois de deixar Barbados, sua terra natal, numa corrente migratória que envolveu milhares de operários. Todos eles foram recrutados, no início do século XX, para a construção da ferrovia Madeira-Mamoré. Eram os barbadianos - termo genérico que na Amazônia identificava os negros de qualquer uma das colônias inglesas do Caribe. Era entre eles que circulava o Times de Porto Velho, impresso no meio da floresta, totalmente escrito em inglês, com notícias sobre mortes, acidentes e a ação deletéria dos piuns e mosquitos. O exemplar do Times caboco, além de noticiar a morte no Palácio do Catete do presidente da República, Afonso Pena, ocorrida no dia 14 de junho, trazia um erro tipográfico: a data impressa é 1609, com o primeiro 9 invertido transformado em 6. Talvez, por essa curiosidade, Edmundo o trouxe em sua bagagem quando, levado pela crise da borracha, migrou para Manaus acompanhado de seu irmão Henry. O coração de colecionador já pulsava, então, no peito do velho Ed, que não teve coragem ou vontade de descartá-lo. Foi aí que os irmãos Busby se instalaram com mala e cuia naquela casa humilde de madeira, coberta de zinco, com chão de terra batida, que lhes teria sido cedida, em 1917, pelo então governador Jônatas Pedrosa. Ela abrigou o primeiro exemplar da coleção de jornais. Era uma casa escura, permanentemente fechada, tinha a cara e a cor da pele dos seus donos. Com o tempo, o uso diário do fogareiro de carvão deixou o teto enegrecido e a parede tisnada pela fuligem, o que não incomodava ninguém, porque a casa não acolhia visitas de amigos ou parentes. Os ferrolhos das duas janelas nunca se abriram para deixar entrar um raio de sol ou para arejar seus cômodos, nenhuma saia jamais cruzou a soleira da porta, nenhuma fêmea despiu seu sutiã no quarto daqueles dois celibatários. O único gemido de prazer que soou naquele ambiente foi um estalo onomatopeico produzido pelo contra-regra da Rádio Baré, simulando um beijo apaixonado entre os atores Jerusa Mustafa e Jaime Rebelo, transmitido por uma radionovela local criada por Alfredo Fernandes. A vida, ali, só entrava através dos jornais e do rádio. O Coffee e o Milk Discretos e misteriosos, os dois irmãos viviam isolados do mundo, sem a alegria de uma mulher, de uma criança ou de um amigo, mergulhados em extrema solidão, com raros contatos até mesmo com os vizinhos com quem compartilhavam a mesma parede no Beco da Bosta. De um lado, na casa 133, residia seu Arlindo e dona Luzia com suas duas filhas, Cleide e Cléa. De outro, no n° 137, morava minha família. As brechas das tábuas de madeira tinham sido cobertas por jornais, mas às vezes podíamos ver através delas, com certa dificuldade, as sombras dos dois irmãos arrastando os pés, de manhã cedo, até o quintal para ir dar milho às galinhas. O que víamos era pouco, mas ouvíamos tudo que se fazia na casa vizinha: os pigarros, as tosses, os flatos, os banhos de cuia com água do camburão, as sonoras mijadas na madrugada, a dispneia ofegante e até o silêncio. Acompanhávamos a Rádio Baré, sintonizada o dia inteiro pelos irmãos Busby, com música, informação, avisos para os cabocos do interior, pedidos e encomendas. Lembro de um jingle com a musiquinha: "Martini, Martini, Martiiiiini! Vermute sensá-cional! Rá, rá! Martini, Martini, Martiiiiini, a marca mundial!". Toda vez que tocava, o velho Edmundo rompia o silêncio e gritava, ele também, o "rá-rá" , acompanhando o riso depois da paradinha do "sensá-cional". Esta foi, talvez, a única manifestação de alegria em sua atribulada existência. Sensacionais eram os apelidos. A dupla de irmãos ficou conhecida como Cófi e Milque por causa da cor da pele de cada um. Ambos eram negros, mas a pele do Coffee permanecera negra, de um negro tão retinto que azulava. Já o seu irmão, por contraste, passou a ser o Milk depois que, em contato com a hidroquinona da borracha, no rio Abunã, contraiu o vitiligo, que embranqueceu sua pele, despigmentando-a por falta de melanina, deixando-a coberta de manchas brancas, de diferentes tamanhos que se espalharam por todo o corpo: braços, pernas, cotovelos, joelhos. Era um Michael Jackson avant la lettre. Os moleques do bairro, que acompanharam o processo de desbotamento, preferiam chamá-lo de "Descascado". Edmundo, o Cófi e Henry, o Milque ou "Descascado" andavam sempre vestidos com a mesma roupa: uma jaqueta de brim azul, com golinha arredondada tipo Mao-Tse-Tung. Parecia até farda. A forma como eles sobreviviam continuava a ser um mistério, ora diziam que tinham uma minguada aposentadoria, ora que recebiam pequena pensão enviada mensalmente de Barbados. Eram, efetivamente, sobreviventes de uma guerra na selva que matou mais de 7 mil barbadianos, vítimas de doenças tropicais, malária, febre amarela e hepatite e se mais não matou foi graças ao sanitarista Oswaldo Cruz, que saneou os canteiros de obras. Diariamente, Edmundo Busby, o Cófi, passava pela Santa Casa de Misericórdia, e recolhia exemplares dos jornais do dia anterior: O Jornal e o vespertino Diário da Tarde da família Archer Pinto, o Jornal do Commércio fundado por Rocha dos Santos e A Crítica de Umberto Calderaro. Foi assim que ele montou sua coleção. Sem dinheiro para comprá-los, lia os jornais sempre com um dia de atraso e depois empilhava-os sobre estrados improvisados de madeira, de forma organizada e metódica, sem misturar os títulos, classificando-os por ordem cronológica. Assim, parecia querer aprisionar entre as quatro paredes de sua casa acontecimentos de Manaus, do Amazonas, do Brasil, do mundo. Meu brotinho A única vez que entrei naquele castelo de papel foi quando o Coffee ficou sem o Milk, que morreu deixando o irmão mais velho afogado num poço de tristeza. Eu era um moleque de 7 ou 8 anos, talvez 9, por aí, estava jogando bola na rua. Fazia uma semana da morte do "Descascado". O velho Edmundo, tristonho, me chamou da porta de sua casa, se queixou que estava muito doente, não podia sair, e me pediu o favor de ir até a taberna do Seu Thomaz buscar - assim mesmo - o "remedinho" dele. Deixaria a porta aberta, para que eu entrasse com o remédio. Fiz o que pediu. Levei uma caneca de alumínio e dei o recado à dona Maria do Seu Thomaz. Ela já sabia do que se tratava. Derramou dentro da caneca o líquido de uma garrafa - a memória é traiçoeira - não sei se era Martini, vermute sensá-cional, rá-rá, ou o concorrente Cinzano, cujo jingle tocado pela Rádio Baré recomendava: "Sim, sim, Cinzano, Cinzano sempre faz bem, muito bem, Cinzano agrada ao paladar, em se tratando de vermute eu não me engano, em quero Cinzano, eu bebo Cinzano". Entrei na casa sombria, com um certo medo. O velho Edmundo, que morreria meses depois, estava prostrado em uma rede de tucum. Era lá que ele passava o dia, ouvindo a Rádio Baré e folheando os jornais. Bebeu o martini - ou foi cinzano? - de uma talagada só. Deu uma cusparada com pontaria certeira, que caiu dentro do penico debaixo da rede. Foi aí que meus olhos, estupefatos, contemplaram a maior hemeroteca que o Amazonas já teve. O velho colecionador estava literalmente sitiado por uma muralha de papel, eram pilhas e pilhas de jornais, que subiam do chão até o teto, tomando conta da casa, da sala, do quarto, da cozinha e até do pequeno banheiro. Há quem considere que acumular e guardar objetos descartáveis é uma doença, uma incapacidade de se desfazer das coisas velhas e inúteis. Tem gente que guarda escova de dente usada, prego e parafuso velho, lâmpada queimada, guarda-chuva quebrado, caneta sem tinta, garrafa vazia, rolha de garrafa. Confesso que eu mesmo não consigo jogar fora aquele aramezinho de pão de forma. Meu ex-professor Ruggiero Romano não conseguia se desfazer de papéis usados, mania adquirida durante a Segunda Guerra, na Itália, que ocasionou a escassez de papel. Dizem os entendidos que qualquer coleção tem o poder de representar o indivíduo, ligando-o ao mundo que o cerca. Desta forma, no ato de colecionar coisas, colecionamos a nós mesmos. No caso da hemeroteca do velho Edmundo, o que ela queria dizer sobre ele? Qual a sua funcionalidade? Com que regularidade ele a consultava? O que é que ele buscava nos jornais antigos? As perguntas são pertinentes porque parece até que ele queria guardar o infinito entre as quatro paredes da casa escura, aprisionando o tempo escondido naqueles velhos papéis que testemunharam parte da História do século XX. De qualquer forma, colecionando jornais, ele preenchia uma lacuna que devia ser obrigação do Estado, através da Biblioteca Pública. Aqueles velhos jornais teriam desaparecido sem deixar vestígios, se tivessem embrulhado peixe na feira. Seu destino final seria a lata de lixo. Mas estavam ali, lutando contra o mofo, o bolor e outros fungos, resistindo à morte, como o velho Edmundo Busby que deixou uma enorme responsabilidade sobre meus ombros: se eu não escrever sobre ele e sua coleção, ninguém jamais saberá que ele passou pelo planeta terra. A memória às vezes nos engana, mas acho que a minha visita à hemeroteca do velho Edmundo aconteceu num carnaval, no final da década de 1950. Lembro que na hora em que eu saía do castelo de papel, a Rádio Baré tocava uma marchinha do Luiz Gonzaga que fez sucesso na época. Mais de meio século depois, continuo ainda ouvindo a voz do cantor Francisco Carlos: -"Ai, ai, Brotinho / Não cresça meu brotinho / E nem murche como a flor / ai, ai brotinho / Eu sou um galho velho / mas eu quero o teu amor / Meu brotinho / por favor, não cresça (bis) / já é grande o cipoal / Veja só que galharia seca / tá pegando fogo no meu carnaval". A coleção do velho Edmundo murchou como uma flor. Quando ele morreu, tocaram fogo em parte dos jornais; outra parte teria sido incorporada à hemeroteca do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA). Lá se foi ele, embrulhado em sua mortalha, lá se foi o Times amazônico brigando contra o tempo, retrocedendo três séculos com sua data invertida. O resto é silêncio. P.S. - Agradecimentos: 1) À Regina Nakamura, que me ajudou a lembrar o velho Edmundo; 2) À minha colega, doutora Leila Beatriz Ribeiro, do Programa de Pós-Graduação em Memória Social, da UNIRIO, que me fez refletir sobre o ato de colecionar, a partir de seu trabalho sobre os objetos de coleção na trajetória de Urbano, o Aposentado; 3) Aos historiadores Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, Vânia Tadros, Luiz Bitton, Francisco Jorge dos Santos e Patrícia Sampaio, com quem organizei o livro "Cem Anos de Imprensa no Amazonas (1851-1950) - Catálogo de Jornais" publicado em Manaus, em 1987 (1a. Edição - Editora Ana Cassia) e em 1990 (2a. edição Editora Umberto Calderaro); 4) Aos historiadores Luís Balkar Pinheiro e Maria Luiza Ugarte Pinheiro do Laboratório de História da Imprensa no Amazonas (LHIA - UFAM), que seguraram a peteca; 5) Aos meus alunos de Jornalismo Comparado da UFAM, que em 1978 fizeram o primeiro levantamento na hemeroteca do IGHA e a quem faço questão de aqui nominar: Izane Torres, Wandler Cunha, Inácio Oliveira, Regina Helena Magnoni, Eliana Ribeiro, Flávio Cohen, Maria do Socorro Oliveira, Maria de Fátima Sampaio, Conceição Derzi, Otoni Mesquita, Ângela Abreu, Maísa Vilhena, Antonio Braga, Roberta Silva, Adeice Torre, Eduardo Monteiro de Paula, Orlene Marques, Jorge Marques, Maria de Jesus Martins, Circe Alves, Ana Maria Pina, Izabel Melo, Etra Lúcia Batista, Roselane Galvão, Alice Valle da Costa, Josely Moreira Ribeiro, Idalina Lasmar, Maria José Azevedo. José Ribamar Bessa Freire é professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio), onde orienta pesquisas de doutorado e mestrado e da Faculdade de Educação da UERJ, onde coordena o Programa de Estudos dos Povos Indigenas.coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO) e edita o site-blog Taqui Pra Ti. Tem mestrado em Paris e doutorado no Rio de Janeiro. É colunista do novo Direto da Redação. Direto da Redação é editado pelo jornalista Rui Martins.
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