Rio de Janeiro, 30 de Outubro de 2024

O Brasil: um país à deriva jurídica

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Terça, 03 de Maio de 2016 às 11:50, por: CdB

Os meios de comunicação transformaram a política numa caricatura, num espetáculo, esvaziando-a de seu sentido substancial

Por Marilza de Melo Foucher – de Paris:

O dia 17 abril de 2016 marcará a história política do Brasil. Pela primeira vez a jovem democracia brasileira é maculada por um processo político sem fundamentação jurídica que viola o preceito constitucional. Como disse Jessé Souza, Presidente do Centro de Pesquisas de Economia Aplicada (IPEA) no Brasil, "É um golpe de Estado que desrespeita a soberania popular, o ponto de partida de um período  de caos e de violência (...) O golpe de Estado tem um braço midiático que levou uma campanha de combate seletiva contra a corrupção, que é a chave da manipulação de um público mal informado. Esse golpe responde as necessidades econômicas da classe dominante. Não se trata  de um combate contra a corrupção, mas da luta pelo poder por parte dos poderosos".

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O silêncio da Corte Suprema ante esse espetáculo pirotécnico é ensurdecedor

A Câmara de deputados do Brasil não levou em conta a acusação contra a presidente em relação ao crime de responsabilidade, o argumento de, pedalada fiscal, foi deixado de lado. Em nenhum momento foi abordado esse tema pelos deputados que votaram, sim à destituição. Nesse contexto, parece perfeitamente natural dizer que se trata dum golpe de Estado parlamentar. Que dirá a Corte Suprema do Brasil perante esses deputados que decidiram rasgar as páginas da Constituição em público sem nenhum respeito ao sufrágio universal? Segundo o Art. 14 do texto, a soberania popular é exercida pelo sufrágio universal e pelo escrutínio direto e secreto, com um valor igual para todos. A grande questão hoje é a defesa da cidadania, da democracia, da Constituição. O silêncio da Corte Suprema ante esse espetáculo pirotécnico é ensurdecedor. A Corte suprema deve assumir plenamente seu papel de garantir os direitos constitucionais. Ela é a única capaz de por fim a anarquia jurídica que assola atualmente o Brasil.

É surrealista ver o Presidente da câmara dos deputados Eduardo Cunha presidir a sessão quando ele próprio está sendo investigado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Além disso, ele é citado na lista de Panamá Papers, como proprietário de uma sociedade off-shore suspeita de evasão fiscal. A sua reputação de gangster parlamentar parece confirmada e uma questão se coloca: Como esse homem pode julgar uma mulher decente que não é acusada de nenhum crime? O cúmulo desta crise institucional é ver esse deputado ultraconservador do PMDB em posição de se tornar vice-presidente do Brasil. Ele é também conhecido por ser o principal representante do grupo "BBB", por "Boi. Bíblia, Balas", um coletivo que defende nada menos que os interesses dos lobistas do agronegócio, as igrejas evangélicas e das armas de fogo. Acusado de numerosos crimes, ele é processado pela Suprema Corte. Perante essa constatação, ela por si só deveria tirar toda legitimidade política ao processo de destituição no seu conjunto.

Um novo elemento inquietante no seio da câmara de deputados, neste domingo 17 de abril, é a referência a um recurso já utilizado para reforçar o golpe de Estado militar de 1964: A religião, a família, Deus e a preservação  da pátria contra a corrupção. O tom marcial utilizado pelos deputados partindo em cruzada foi estarrecedor, querendo aparentar como si fossem os mais honestos do país. No entanto, a maior parte deles foi eleita com dinheiro da corrupção política, sustentada pelas empreiteiras. Dezenas de parlamentares, principalmente do grupo conhecido como BBB (Boi. Bíblia, Balas), uma vez mais, ligados à corrente  evangélica e ao agronegócio, votaram invocando o nome de Deus. A maioria de parlamentares dedicou seu voto à família, citando os nomes da mulher, avô, filhos e netos, um espetáculo desolador para a política, digna de uma  república das bananas. A fantasia se transformou em histeria coletiva. No meio de gritos, os deputados  portavam cartazes com seus slogans respectivos e até organizaram apostas como si fosse uma carreira hípica ou uma partida de futebol. Finalmente, nos deram um espetáculo indigno de representantes do povo. Os deputados de esquerda tiveram uma grande dificuldade para fazer ouvir a sua voz no meio de gritos e insultos.

A câmara de deputados é controlada por analfabetos políticos, conservadores que escolheram uma via diferente à democracia, baseada no sufrágio universal. Hoje, essa maioria perdeu toda autoridade moral para representar o povo brasileiro e conduz o país ao caos. O único projeto para o Brasil é o retorno do neoliberalismo. Uma vez mais, os que sofrerão as consequências são os 40 milhões de brasileiros que os governos Lula e Dilma tiraram da exclusão. O presidente do Banco Santander no Brasil, Sergio Rial, declarou numa entrevista ao jornal Folha de São Paulo que o Brasil vai sair rapidamente da crise. Por isso, o executivo de um dos maiores bancos privados que operam no Brasil estima que é necessário manter a ordem democrática: "Não é o golpe de Estado  que vai conduzir à  solução. Diga-se de passagem, não há solução para a crise  institucional. Só há caos". Para Rial, o pior da crise econômica já passou. "Eu acho que a atividade econômica tem tudo para recomeçar. O setor privado já fez a sua adaptação"

O processo de destituição da Presidente do Brasil está atualmente nas mãos do Senado, que poderia cassá-lo a partir da primeira quinzena de maio durante um máximo de seis meses por um voto de maioria simples. Esperando um julgamento final, o «caos» político se agrava assim como as perspectivas de retomada da economia que se afastam. Além disso, o país está completamente dividido.

Si Dilma Roussef é destituída, será substituída por seu vice-presidente, Michel Temer, ele também acusado de receber propina. Si por sua vez fosse destituído de suas funções, a Constituição prevê que o presidente da Câmara dos deputados é quem deve assumir a presidência do país. E desta forma que Cunha, o mais corrupto de todos, em lugar de ir à prisão, se transformaria no Presidente do Brasil!

Nosso país ficará órfão de seus direitos constitucionais, à deriva jurídica, sujeito periodicamente a esses golpes de Estado políticos? Está a ponto de se converter numa república das bananas? Estou com muita vergonha do meu país!

De quem é a culpa?

Atualmente ninguém pode isentar a aliança mediático-político-jurídica de ter jogado um papel nessa situação, esse caos político e econômico do  Brasil. Os meios de comunicação transformaram a política numa caricatura, num espetáculo, esvaziando-a de seu sentido substancial. A grande imprensa e as redes de  televisão tem sido um instrumento de propaganda para atiçar o ódio e a polarização da sociedade brasileira. Eles injetaram, alimentaram o pessimismo do futuro econômico do Brasil. A imprensa não cumpriu a missão de informar nem de servir de contraponto, garantia da democracia. Infelizmente, ela construiu um discurso partidário contra os governos do PT designado como o único responsável da corrupção no Brasil, enquanto que os escândalos de corrupção alcançavam o conjunto de partidos políticos de direita. Mais do que nunca, está claro que o objetivo perseguido não era o combate contra a corrupção, mas a queda do governo de Dilma Rousseff. Os setores jurídicos conservadores transformaram as questões jurídicas da operação « Lava-Jato » em operação política com o apoio mediático incontornável de grandes jornais conservadores « Estadão », « Folha de São Paulo ». Esses dois grandes jornais do Brasil pertencem a duas grandes famílias, Mesquita e Frias. A Rede Globo de Televisão é propriedade da família Marinho que possui igualmente estações de rádio, jornais e revistas – domínio onde é um concorrente de família Civita, que controla o Grupo Abril (todos dois detêm em torno de 60% do mercado do livro). Deve se destacar que mais de 30% das concessões de rádio e de televisão no Brasil estão nas mãos do Congresso.

Há 27 senadores e 53 deputados que são parceiros ou próximos dos proprietários de sociedades midiáticas concessionárias do serviço público. Por essa razão cada vez que é aberto o debate sobre a necessidade de pluralidade dos meios de comunicação no Brasil, ele é imediatamente desqualificado. Aliás, toda tentativa de quebrar o oligopólio, proibido pela Constituição, foi considerada como um ato autoritário qualificado de, ditadura bolivariana do PT.

Com algumas poucas exceções, alguns correspondentes da imprensa estrangeira preferiram fazer cópia/colar sem fazer análise política. Eles contribuiram amplamente a desfigurar a realidade brasileira. É difícil saber si é por falta de informação sobre a complexidade política do Brasil, mas frequentemente eles não levam em conta a parcialidade do mundo mediático no Brasil, preferindo uma forma de adesão a essa nova concepção de fazer jornalismo. A forma de apresentar a Presidente Dilma Rousseff é definitivamente em posição de acusada. Esses jornalistas não admitem que ela seja a presidente do Brasil, reeleita faz apenas um ano, e que ela resiste com os meios do Estado de direito a um surto reacionário no país (ver meu blog Mediapart). Felizmente a Internet existe, assim como, a imprensa alternativa para informar a grave crise política institucional e desconstruir o discurso falacioso e reacionário sobre o Brasil. A internet é a esperança de um futuro em que a informação seja compartilhada e distribuída de forma a que todo cidadão possa fazer sua própria opinião.

E verdade que esse golpe parlamentar foi feito sob pressão da mídia e de um setor conservador do sistema judiciário através de reivindicações, reclamações seletivas. Isto demonstra cada vez mais, que é necessário reconstruir a democracia. Somente uma reforma política dará uma legitimidade social à reconstrução democrática. É urgente por um fim a corrupção de políticos eleitos com a doação das empreiteiras. E esse processo passa pela Assembléia constituinte.

O país está frente a um parlamento que representa muito bem o poder econômico e muito mal a pluralidade do povo brasileiro. Basta olhar a composição atual da Câmara de deputados, em que a maioria dos eleitos representam os setores mais conservadores e reacionários. Por exemplo: o setor agrícola e agronegócio (257 eleitos), os homens de negócios (190 eleitos), os ricos pastores e membros de igrejas evangélicas (52 eleitos), antigos membros da policia (56 eleitos). Os representantes de trabalhadores são somente 46 eleitos. O resultado é obvio, esses deputados tem boicotado sistematicamente todas as leis apresentadas pelo governo.

Os defensores da ideologia neoliberal, adeptos da guilhotina dos direitos expressam sempre alergia ao Estado protetor do bem estar, regulador socioeconômico, eles são adeptos do Estado Empresário sem soberania, capaz de se adaptar à nova realidade da globalização econômica Desta forma, desde o início, colocaram em dúvida as conquistas sociais através de programas de inclusão social, assim como questionar os direitos humanos, defesa da igualdade e da promoção de liberdades. Hoje a maioria de  deputados votou a favor da destituição da Presidente Dilma Roussef.

Resta a grande questão: Como criar um sistema político estruturado para a soberania popular? Hoje temos no Brasil uma democracia sem povo, um sistema em que a cidadania não exerce o poder. A verdadeira reforme política é uma reforma do poder e não somente do sistema eleitoral.

Artigo original saído no Mediapart-Paris foi traduzido pela antropóloga Maria José Alfaro Freire

  Marilza de Melo Foucher é economista, jornalista e correspondente do Correio do Brasil, em Paris.
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