Na sexta-feira passada, o governo resolveu encerrar um assunto que estava indo longe demais. Aceitou o pedido de reconsideração apresentado pelo jornalista americano e revogou a decisão de expulsá-lo do país.
Fez bem. Por motivos amplamente comentados, a decisão de cancelar o visto do correspondente tinha sido um equívoco político. E o seu pedido de reconsideração foi respeitoso e mais ou menos satisfatório.
Mas algumas questões ainda merecem ser levantadas. Por exemplo: é hábito de um jornal da importância do New York Times publicar, com tanto destaque e de forma tão tendenciosa, uma matéria de baixo nível, assim tão vagabunda, sobre um chefe de Estado estrangeiro?
Muitos ficaram com a pulga atrás da orelha. Integrantes do governo brasileiro, inclusive o ministro das Relações Exteriores, declararam que se tratava de uma tentativa de atingir a liderança emergente do presidente do Brasil e abalar a sua influência internacional.
Tem fundamento essa interpretação? Não é possível, evidentemente, responder com segurança. Mas não deve haver dúvida quanto ao seguinte: a orientação da política externa brasileira no governo Lula tem provocado, como seria de esperar, uma série de atritos com os EUA. As divergências vêm se acumulando em várias áreas: no âmbito da Organização Mundial do Comércio, nas negociações da Alca, na crise da Venezuela, na questão de Cuba, na invasão do Iraque. Em todas essas questões, o Brasil diverge, de maneira persistente, da linha seguida pelos EUA.
Ora, Washington estava mal acostumado. Nos tempos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, a política externa brasileira permanecia, no essencial, alinhada com a dos EUA. O Brasil não incomodava nem dava dor de cabeça.
Agora é diferente. Sem estardalhaço, com o devido cuidado, o governo brasileiro foi modificando a sua política internacional.
Nos embates com Washington, um aspecto talvez seja particularmente espinhoso: a questão do programa nuclear brasileiro. Na semana passada, enquanto fervia a crise em torno do correspondente do New York Times, o nosso embaixador nos EUA, Roberto Abdenur, reclamou publicamente da pressão que o governo Bush vem fazendo para reforçar as inspeções das instalações brasileiras de enriquecimento de urânio. O Brasil, explicou o embaixador, segue rigorosamente as suas obrigações internacionais nesse campo. "Tendo ido tão longe em termos de compromissos de não-proliferação, é muito desagradável estar sob pressão, às vezes intensa, como se tivéssemos intenções malignas", disse Abdenur (Washington Times, 18 de maio de 2004).
Pressões "desagradáveis", "às vezes intensas". Sintomático? Não é necessário, leitor, supor que a agressão do New York Times ao presidente brasileiro tenha sido encomendada. Ou que o autor da reportagem seja um agente do governo americano. As relações entre governos e grande imprensa, em qualquer país razoavelmente estruturado, costumam ser mais sutis. O poder e a influência do governo sobre os meios de comunicação é geralmente muito grande. É normal que o Departamento de Estado, por exemplo, mantenha contatos freqüentes, off the record, com editores e jornalistas dos principais jornais americanos. O Itamaraty, suponho, faz o mesmo aqui no Brasil.
Pode-se admitir que, ao longo dos últimos meses, o New York Times e outros veículos tenham recebido, por diversos canais, informações e indicações das dificuldades do governo americano com o posicionamento internacional do Brasil desde a posse de Lula. Recorde-se que foi por meio de outro grande jornal americano, o Washington Post, que fontes do governo dos EUA, ou ligadas a ele, trouxeram recentemente a público, e com grande alarde, preocupações com as atividades nucleares do Brasil.
Não é improvável que a imprensa americana tenha sido alimentada, aos poucos, com avaliações negativas, inclusive de caráter pessoal, sobre o governo brasileiro. É assim que se cria um ambiente propício a que