Mulheres libanesas maltratadas e o Fantástico da Globo
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Terça, 08 de Julho de 2014 às 12:00, por: CdB
Nem tudo transmitido pela Globo é ruim, essa a virtude da mídia pluralista. A prova, a série sobre condições das mulheres no mundo, no programa Fantástico, e em especial, a reportagem responsável por protestos dentro da enorme comunidade libanesa no Brasil, com o título Mulheres são vistas como propriedades dos homens no Líbano.
Onde estaria a falha, capaz de justificar o desejo de alguns libaneses organizarem nesta quarta-feira um protesto contra o Fantástico, no Rio de Janeiro, diante da Globo? Para eles, tudo é mentira e tendencioso e, em Beirute, a rede social do Facebook, mostrou críticas e ofensas envolvendo mesmo a embaixada e o consulado brasileiros. Uma dançarina de dança do ventre, emigrante brasileira de origem libanesa, está sendo severamente criticada por ter mostrado, em sua entrevista, a situação deprimente das mulheres no Líbano e sobraram críticas até para o cônsul-geral-adjunto do Brasil em Beirute.
Afinal há algum fundamento para tanta sensibilidade diante do quadro mostrado pelo Fantástico, no qual o machismo libanês supera de longe e muito longe o machismo sulamericano e brasileiro ?
É verdade, o Líbano não é o país onde se lapidam mulheres suspeitas de adultério, obrigadas a usarem um vestido carapaça que lhes cobre tudo, desde a cabeça aos pés, como objetos anônimos pelas ruas. O Fantástico mostra mesmo cenas de discoteca com jovens mulheres sem véu ou chador, maquiadas, cantando e dançando alegres, como em qualquer cidade ocidental. Como, em São Paulo, no Clube Sírio-Libanês por exemplo.
A diferença, porém, surge principalmente quando tais jovens se casam e se tornam, por falta de leis protetoras, verdadeiros objetos de seus maridos. E o choque é grande para brasileiras apaixonadas que aceitam ingenuamente ir viver no Líbano com seus maridos e ter filhos. Tão logo o amor diminui e o cotidiano acaba com as ilusões, a emigrante brasileira descobre não ter nenhum direito, nada a ver com as leis brasileiras, mesmo se forem vítimas de violência conjugal. E dificilmente poderá deixar o Líbano com seus filhos, caso decida e consiga fugir para o Brasil. Outras, divorciadas no Brasil, vão visitar o ex-marido com os filhos e têm de voltar sozinhas.
Não vamos entrar nas origens desse machismo, pelo qual as mulheres são seres secundários. Como ex-representante eleito de emigrantes junto ao Itamaraty, quero simplesmente tornar claro que a situação de inferioridade das mulheres emigrantes brasileiras, mostrada no Fantástico, é real, tanto que o Itamaraty, numa ação conjugada entre embaixada, consulado e conselho de cidadãos, editou, faz dois anos, uma Cartilha para as mulheres brasileiras lerem antes de ir viver no Líbano ou para saberem das poucas opções que lhes restam, se já mudaram para o Líbano com seu marido.
Existe inclusive, em Beirute com o apoio da embaixada brasileira, um serviço de atendimento telefônico para as brasileiras em estado de desespero. E nisto é louvável a ação corajosa do consul-geral-adjunto Luiz Eduardo Pedroso, no atendimento dessas emigrantes e na divulgação da Cartilha.
O Fantástico abordou bem essa questão, neste trecho que transcrevemos -
"Problemas como esse têm sido tão frequentes, e graves, que o Consulado do Brasil em Beirute resolveu fazer uma cartilha, um alerta para as mulheres brasileiras que pensam em se casar com libaneses e se submeter às leis extremamente patriarcais do Líbano.
“É saber exatamente onde vai pisar. As diferenças culturais, as diferentes jurídicas. Se tem violência doméstica, com agressão física ou não”, conta o cônsul-geral adjunto em Beirute Luiz Eduardo Pedroso.
Com um simples telefonema às autoridades de imigração, o marido pode impedir a mulher de deixar o país. E frequentemente o consulado recebe brasileiras pedindo ajuda para voltar para casa.
“Se o marido não botou o nome no aeroporto, há uma maneira de tirá-la daqui, mas tem que ser feito de forma discreta, etc e tal. Se ficar jogando aos quatro ventos o marido fica sabendo, no dia seguinte põe o nome, e ela não sai”, explica Luiz Eduardo Pedroso."
[Por essas poucas palavras pronunciadas no programa Fantástico, o consul-geral-adjunto virou alvo de ataques, inclusive por parte da própria embaixada brasileira na rede social Facebook (!), mas aproveito para lhe transmitir aqui minha solidariedade, ao mesmo tempo que solicito às organizações brasileiras de defesa das mulheres e de nossos emigrantes essa mesma solidariedade.
É um absurdo se pretender contestar a reportagem do Fantástico, mesmo porque a iniciativa da impressão da Cartilha da Emigrante Brasileira no Líbano tem o aval do Itamaraty, em outras palavras do próprio governo brasileiro, sem se esquecer que a presidenta Dilma Rousseff, tem dado seu apoio às políticas de respeito e apoio às mulheres e se pronunciou, na época, contra a lapidação ou morte por pedradas da iraniana Sakineh Mohammadi-Ashtiani.
A situação precária das mulheres no Líbano e em outros 47 países do nosso planeta, segundo a Comissão de Direitos Humanos da ONU, é real e, os ofendidos com a reportagem, em lugar de protestar ou se manifestar contra o Fantástico, fariam melhor se modernizassem as leis libanesas e reconhecessem nas mulheres os mesmo direitos concedidos aos homens.
Para tirar dúvidas, vejam de novo o programa Fantástico, transcrição completa - http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/06/mulheres-sao-vistas-como-propriedades-dos-homens-no-libano.html
Fantástico vídeo -
https://www.youtube.com/watch?v=wVXxDKmR1xQ
A Cartilha da Emigrante Brasileira no Líbano -
http://cgbeirute.itamaraty.gov.br/pt-br/programa_de_apoio_a_mulher_brasileira_no_libano.xml
Rui Martins, jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, editor do Direto da Redação, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, pela recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes. Foi duas vezes eleito representante no Conselho de Emigrantes, para os quais quer a emancipação política. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa.