Meninos, eu vi as jornadas de junho
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Quarta, 25 de Junho de 2014 às 13:25, por: CdB
Em 17 de Junho 2013, plena segunda-feira, encantada com o fervor da garotada que lutava pelo Passe Livre, fui às ruas apoiá-los, exigindo a queda no preço das passagens do transporte público, cujas empresas formam verdadeira máfia.
Fui também porque, nas manifestações anteriores, aqueles jovens haviam sido reprimidos por uma polícia eficiente contra o povo e deficiente contra o crime. Se a juventude é impedida de ter voz, pela mão autoritária de um Estado policialesco, como deslegitimar sua rebeldia?
Naquele dia, assisti, sob o ângulo da Cinelândia no RJ, uma festa da democracia com muitas bandeiras tremulando. As passagens caíram e, em 20 de Junho, fui novamente às ruas. Fui porque precisava ver com os meus olhos para agora dizer: "meninos, eu vi". E ouvi. Gritos de "sem partido", manifestantes desnorteados e antipartidários (o que é diferente de apartidários). Bandeiras vermelhas sendo rasgadas. Tudo o que era vermelho era rasgado. Havia uma bandeira azul, da Portela, tremulando desimpedida.
Fui para defender meu direito de protestar – o meu e o de todos os que nos dias anteriores foram impedidos. Mas aquele dia foi diferente. Conheci ali uma pessoa que não havia ido à passeata de segunda-feira – e era a primeira vez que ela participava de “qualquer coisa política”, segundo palavras dela, que nem desconfia que a política está na vida. Desorientada, ela não sabia o que estava fazendo ali. Apenas queria estar.
Conversei com ela, tentando convencê-la sobre a importância dos partidos políticos. Não sei se ela entendeu. Mas muitos ali não entenderam. Não satisfeitos em só rasgar, vi bandeiras vermelhas serem pisoteadas e foi uma das cenas mais tristes da minha vida. Não por serem vermelhas, mas por serem bandeiras.
Diversos veículos de comunicação deram destaque a uma foto de um sujeito mordendo que nem um louco a bandeira do PT. Se, nesses 10 anos no poder, o PT tivesse democratizado as comunicações, bandeira abandonada pelo ministro Paulo Bernardo, e se parte da militância petista não tivesse se afastado das ruas, talvez nada disso tivesse acontecido. Dilma, quando tinha mais ou menos a minha idade, encarou militares que esconderam os rostos. No pronunciamento da noite de sexta-feira, 21 de Junho de 2013, ela encarou com firmeza mascarados sem rumo, mas faltou criticar a ação de uma polícia que tentou calar jovens com métodos muito parecidos àqueles da ditadura.
O prédio do Itamaraty em chamas e a violência que se generalizou por todo o Brasil não podem ser colocados somente na conta dos manifestantes. Isaac Newton quando fez a lei da ação e reação certamente pensou que repressão gera pressão. Seria ingênuo demais achar que a massa atiçada nas ruas não iria dar nisso. O aprendizado da democracia é um processo demorado, mas merece ser processo sem volta.
Na quinta-feira, dia 20, levei um cartaz escrito "Quem tem medo da democracia?" Desci a Av. Presidente Vargas, junto com quase 1 milhão de pessoas, muitas sem saber por que estavam ali. Eu sabia. Queria saber quantos e quais se atrairiam por aquele cartaz. Todos. Descobri, naquele dia, o quanto a democracia é uma palavra prostituída: tanto na esquerda como na direita, poucos a entendem, e é por não entendê-la que a admiram. Até houve gente se oferecendo a me ajudar a carregar o cartaz.
No final, aquela pessoa que havia me dito que pela primeira vez participava de “qualquer coisa política”, me disse: "foi ótimo ter marchado com você". Aquele termo - "marchado" - bateu como uma bomba no meu ouvido direito. Em 3 dias, a bela passeata que eu havia visto no dia 17 se transformou em marcha. Em 3 dias, um movimento legítimo, com causa, foi sequestrado e transformado numa geleia geral.
Geléia esta que foi se desfazendo através da ação violenta de mascarados, infiltrados, que leva grande parte da sociedade a legitimar a ação da polícia. Qual o saldo? A sociedade foi às ruas pelo direito de se manifestar, sem saber contra o quê. Hoje a sociedade fica em casa aplaudindo o circo que a PM monta a cada manifestação. De um ano para cá, o que se vê é um aparato repressivo sempre maior do que o número de manifestantes. Será esse o legado das jornadas?
Se quando as ruas gritam a repressão policial que se vê é de deixar os generais da ditadura corados de inveja nos túmulos para onde foram impunes, será que o Brasil está fadado à pasmaceira da política feita nos tribunais, pautada pela mídia? Será que o Brasil se entregará à política leviana dos que ficam sentados em casa dizendo que todos que estão na rua são fascistas? Até eu fui chamada de fascista por estar na rua fotografando, filmando, registrando. Mussolini deve estar até hoje gargalhando no túmulo por causa disso.
Há quem diga muita coisa – e dizer é muito fácil. Dizem que “essa juventude não tem mais o que fazer”. Essa juventude está fazendo política. De forma errada ou acertada, dependendo dos olhos de quem vê, é nas ruas que a política tem que ser feita. Dizem, sem provas, que o Movimento Passe Livre (MPL), responsável pelas primeiras manifestações em São Paulo, é um movimento pago. Dizem que os Black Blocks são pagos, como se os BBs fossem um grupo homogêneo.
O fato é: infiltrados e oportunistas existiram em toda a história da humanidade. Vão existir sempre. Mas o direito à manifestação é inalienável. E o povo, ao que me pareceu nos dois atos, não está disposto a perder as garantias constitucionais que nosso país conquistou com tanto sangue. O problema é que, na quinta-feira, dia 20, os que não foram na segunda acharam que podiam se apoderar de um movimento legítimo.
Eu me senti nitidamente tendo ido à passeata dos 100 mil num dia e à Marcha com Deus pela Família no outro. Progressismo na segunda, quando havia o foco na luta pela redução do preço das passagens; conservadorismo travestido de revolta na quinta, quando uma miscelânea de temas inundou a Presidente Vargas. A frase “O gigante acordou”, que ganhou força na quinta-feira, é reveladora. Parece tirada de um livro de história, que conta páginas negras. E se faz preocupante por repudiar aqueles que estão acordados há muito tempo.
A Veja publicou no sábado, 22 de Junho de 2013, uma capa com uma brasileira carregando a bandeira do Brasil em meio ao fogo. Decretava: “os sete dias que mudaram o Brasil”. É uma fixação que eles têm por esse negócio de “mudança”. Basta ver que fizeram uma capa dizendo que Joaquim Barbosa é “o menino que mudou o Brasil”. Mudou para onde?
O que eles e os mascarados querem mudar? Querem mudar o tom dos passos. Querem tirar o povo das ruas. Querem trocar Chico Buarque pela banda de música da UDN.
Vídeo 17 de Junho de 2013, a História na minha frente em 1 minuto: http://www.youtube.com/watch?v=X4Bdb21YghA
Ana Helena Tavares, jornalista, conhecida por seu site de jornalismo político Quem tem medo da democracia?, com artigos publicados no Observatório da Imprensa e na extinta revista eletrônica Médio Paraíba. Foi assessora de imprensa e repórter dos Sindicatos dos Policiais Civis e dos Vigilantes. Universitária, entrevistou numerosas pessoas que resistiram à ditadura e seus relatos (alguns publicados na Carta Capital e Brasil de Fato serão publicados brevemente num livro.
Direto da Redação é editado pelo jornalista Rui Martins.