É a grande surpresa do Festival de Locarno - um cineasta de renome em Hollywood, num filme independente produzido pelo ator Matt Damon, fez um filme com o ritmo dos diretores portugueses e longos planos dignos de diretores chineses ou iranianos. O filme vai na direção oposta do cinema americano, pois é lento, extremamente lento, quase sem diálogo e em lugar de rock ou jazz como música de fundo, tem a bela mas monocórdia música do finlandês Arvo Part. Gerry é o nome do filme e dos dois jovens personagens, interpretados por Matt Damon e Casey Affleck, que decidem esticar as pernas numa área desértica protegida, mas após uma hora de passeio e, sem bússola, sem água, sem comida, sem mochila e péssimos conhecimentos de orientação, se perdem. Ficam praticamente dando voltas, sob um sol escaldante e sem árvores para se protegerem, até chegarem ao desespero e desânimo, a apenas alguns quilômetros da autoestrada. Gus van Sant, seguindo orientações expressas de Matt Damon, quis fazer um filme fiel ao ocorrido com dois jovens americanos, sem incorporar na história qualquer psicologismo na relação entre os personagens. Não há outra preocupação entre os dois, senão a de encontrar o caminho da volta. Sobem nas montanhas na tentativa de melhor se orientarem, sentem sede, têm miragens, Com música de Arvo Part se ouve o barulho seco de suas botas sobre pedras e pedregulhos ou do vento que sopra. Nessa tentativa de cinema de arte, num Gus van Sant que reconhece a influência de Béla Tarr, houve o desejo realista de dar também ao espectador a sensação de estar perdido no deserto, junto com a equipe que seguia os atores. O próprio Gus van Sant confessa ter se perdido naquele deserto quando fazia o reconhecimento dos locais de filmagens. As reações da crítica e do público de Locarno foram extremas - ou se gosta ou se detesta. Um grande número de pessoas vai abandonando a sala durante a projeção e alguns aplaudem ao surgir o letreiro, pouco antes de se ver o rosto sujo e queimado pelo sol de Matt Damon. INSPIRADO NUM CASO VERÍDICO "A idéia inicial foi de Matt Damon, conta Gus van Sant, depois de ter lido no jornal a desventura de dois jovens perdidos no deserto. Um ano depois, num jantar com os atores decidimos ir ao deserto, sem haver um roteiro mas encontros, nos quais decidíamos o que filmar. A base era o caso verídico lá ocorrido. Uma parte do filme foi improvisada, não havia um programa pré-fixado, tudo podia ser modificado na véspera da filmagem" Pergunta - Que tipo de ritmo adotou no filme? Gus van Sant - Existem diversas maneiras de se abordar o tempo no cinema. No cinema normal as imagens reproduzem o tempo real de uma maneira muito rápida. O cérebro acompanha as imagens num ritmo diferente do coração. Tentei me aproximar do tempo da maneira como viviam cérebros dos protagonistas perdidos. Tanto no carro como depois de descerem e entrarem no deserto. Pergunta - O filme não tem nada a ver com Good Will Hunting, também em colaboração com Matt Damon... Gus van Sant - Para Matt Damon e Ben Affleck esse filme tinha de ser hollywoodiano, mas com o filme Gerry não houve nenhum interesse em conquistar Hollywood. Nosso sucesso anterior nos permitiu fazer um filme fora das normas usuais, uma espécie de experiência, cujos resultados fogem de certas convenções. Em comparação com o que se faz hoje em Hollywood, Good Will Hunting é quase um filme de arte e ensaio, pois não é um filme de ação, produzido pela Miramax como filme de pequeno orçamento. Gerry vai além do filme de arte e ensaio, pois fomos nós que assumimos seu financiamento.
Gus van Sant perdido no deserto
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Quarta, 07 de Agosto de 2002 às 14:56, por: CdB