Rio de Janeiro, 22 de Dezembro de 2024

Fazendas da fronteira em Terra Boa são transformadas pelos Guaranis

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Sábado, 10 de Janeiro de 2004 às 11:59, por: CdB

- Vocês têm que tomar cuidado com o que fazem aqui dentro, senão o pessoal chega lá fora dizendo que o índio... é feio - diz o policial, em tom de quem fala com criança.

 Antevéspera do natal de 2003, estrada entre os municípios de Iguatemi e Japorã, no extremo sul de Mato Grosso do Sul, a pouco mais de uma dezena de quilômetros da fronteira com o Paraguai.

Os guarani e kaiowá líderes da ocupação da fazenda Agrolak, efetivada na tarde do dia anterior, estão parados, quietos, uns de braços cruzados, outros largados pelo chão, rosto esticado, olhando de baixo os federais estancados bem em frente da porteira, todos bem de pé, espinhas eretas, pernas afastadas, mãos nos cintos, como caubóis.

- Agora, vocês vão nos dar palavra de homem, quer dizer, de índio, de que não entrarão em outras fazendas - pronuncia, solene, outro dos homens da Lei.

Os avá - homens, na tradução deles, índios, na nossa - assentem com a cabeça. Prosseguem com o nhembotavy, o jogo que consiste em fazer-se de bobo para os que, mesmo bem intencionados, resistem a reconhecer inteligência e perspicácia em quem não é branco. O mal-entendido nem parece desapreço.

Na conversa à noite, na lanchonete em Iguatemi, os policiais demonstram boa vontade para conhecer mais esses estrangeiros, fazem perguntas ao antropólogo sobre as reivindicações deles, a história da região. Deixam claro o tempo todo sua condição de intermediários da Justiça:

- A partir do momento em que o juiz ordenar, nós temos que cumprir a ordem de reintegração de posse. O ideal seria que eles voltassem para a estrada - disse.

Longe disso. Desde essa conversa até a edição desta reportagem, os guarani já ocuparam, invadiram ou retomaram, a depender do ponto de vista, oito fazendas vizinhas aos 1648 hectares da reserva de Porto Lindo. Eles têm pleno conhecimento do conteúdo do relatório preparado em 2002 pelos antropólogos Fábio Mura e Rubem Thomaz Almeida a pedido da Funai. Sabem que a Justiça pode ter dúvidas, mas a ciência já endossou aquilo de que todos os seus representantes mais velhos têm certeza.

Os nomes inventados pelos brancos para mais de uma dezena de frágeis cercados de arame em torno de plantações de soja e pastos para o gado não valem: por ali, até onde o olho alcança, mais de 7,8 mil hectares entre o córrego Jakarey e o rio Iguatemi, é a Yvy Katu (terra boa, em guarani), tekoha (área de ocupação tradicional) dos guarani.

Nas paredes das construções da sede da Agrolak, é o que se vê repetido dezenas de vezes, como se para apagar o passado recente e inscrever em definitivo a sua própria versão da realidade e da história: "Aldeia Yvy Katu".

 Há mais jogos que os guarani conhecem. Como o jogo do espelho, o mesmo que se joga na política e na guerra. Consiste em parecer aquilo que o outro quer ver para conseguir ser visto da forma mais conveniente no momento.

Quando os brancos chegaram à região, no início do século passado, os guarani se fizeram de caboclos para, em troca de novidades como o sal e o charque, poder trabalhar na extração da erva-mate nativa, nas então densas florestas da região: vestiram alguma roupa e deixaram de se pintar, cantar, dançar e rezar em público.

Hoje, para conseguir o respeito que lhes garanta o direito reservado ao índio pela Constituição de 1988 e coibir pelo medo os possíveis ataques dos jagunços em revide às ocupações, eles têm de se parecer com os selvagens em cuja existência os brancos são acostumados a acreditar desde crianças.

 É preciso pintar-se para a guerra, com urucum, carvão e jenipapo, além de improvisar arcos e flechas e ornar-se com penas, ainda que de galinha, pato, ou mesmo recortadas em papelão.

Para garantir o anonimato que lhes permita voltar a circular pelas ruas e lojas das pequenas cidades da região em tempos vindouros de paz, é preciso esconder o rosto, seja com máscaras de carnaval ou camisetas ao estilo dos

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