Rejeição esmagadora da Constituição européia na França pode servir de estímulo a muitas das forças progressistas da UE, fazendo com que se repense um ideal que aos poucos foi distorcido e transformado em mercado comum e sócio militar menor dos EUA.
A maior parte das análises sobre o plebiscito na França sofre de um único probleminha: os que investigam as motivações da grande maioria que votou pelo não (54,87%) esquecem de nos dizer que votaram de forma esmagadora pelo sim
Por mais de seis meses, todos os principais analistas da mídia glorificaram o projeto constitucional. Os dois maiores proprietários de veículos de comunicação (e fabricantes de armas) da França apoiaram o lado do sim: o senador conservador Serge Dassault o fez num editorial em uma de suas muitas revistas; Arnaud Lagardère falou em um comício pró-sim, aplaudido por Nicolas Sarkozy e grande parte de seu gabinete. A maioria dos analistas observou que Jacques Chirac havia sido atingido por essa derrota, mas a debacle dos principais meios de comunicação da França é ainda mais impressionante. Do canal de TV TF1, de direita, ao semanário "de esquerda" Le Nouvel Observateur, passando pelo Le Monde e pelo Libération e incluindo a imprensa voltada aos negócios, as principais estações de rádio e até mesmo as publicações femininas e esportivas - todos admoestaram e injuriaram, todos censuraram e distorceram. Mesmo assim, sua propaganda foi desqualificada por uma inesperada onda de democracia.
Milhares de reuniões muito concorridas discutiram o tratado constitucional. E, pouco a pouco, a sensação de inevitabilidade, de que ele seria facilmente ratificado por um eleitorado não muito interessado, foi rompida. Na verdade, a indignação com o caráter tendencioso da mídia se tornou uma questão central na campanha - principalmente porque sintetizava tantas das coisas a que esse referendo veio a envolver: representação, elite e questão de classe.
No aspecto político, o problema é claro. Em fevereiro passado, mais de 90% dos deputados franceses haviam dado seu apoio à constituição, e ela obteve o apoio de apenas 45% dos eleitores. A distância não é menos óbvia quanto se trata de informar o povo: os principais jornalistas, muitos dos quais moram em Paris - uma cidade cada vez mais burguesa - parecem escrever e falar aos afluentes. E os ricos votaram sim, por ampla margem, assim como 66% dos parisienses. Mas em outros lugares, a história foi bem diferente: 74% dos eleitores que ganham mais de 4.500 euros por mês apoiaram o projeto constitucional; 66% dos que ganham menos de 1.400 euros votaram contra. Na ultra-rica região de Neuilly (um bairro de Paris onde moram muitos magnatas da indústria e da mídia, e cujo prefeito é o aspirante a presidente Sarkozy), 82,5% votaram sim. Cidades de mineração do norte da França e os bairros mais pobres de Marselha foram igualmente desequilibrados: 84% de Avion (Nord-Pas-de-Calais) e 78% do 15o distrito de Marselha votaram não.
Está certo, Chirac perdeu. Todavia, não deve demorar muito até que os Socialistas comecem a se perguntar a quantas anda o desempenho de um partido da esquerda quando 80% dos trabalhadores e dos desempregados, 60% dos jovens e uma grande parte de seus eleitores abandonaram sua posição oficial numa questão de tamanha importância. Quatro anos atrás, Pierre Moscovici, então ministro para Assuntos Europeus da França, escreveu no Financial Times que o triunfo de Tony Blair representava "uma excelente notícia para a esquerda e para a Europa. Para a esquerda, mostra que um bom líder, bons resultados e um bom programa podem vencer eleições. Desse ponto de vista, Blair é um exemplo admirável a outros social-democratas". Mesmo assim, alguns meses após ter sido inspirado por esse "exemplo admirável", Lionel Jospin foi humilhado na eleição presidencial francesa e jogado para escanteio por Jean-Marie Le Pen. A causa? Um abismo entre o Partido Socialista e o eleitorado de classe tra