Rio de Janeiro, 21 de Dezembro de 2024

As proezas da finança capitalista

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Quarta, 17 de Setembro de 2014 às 10:17, por: CdB
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Belluzzo é um dos economistas heterodoxos brasileiros mais respeitados
A Dinâmica Financeira da Era Neoliberal A regulamentação financeira da era neoliberal permitiu que fossem apagadas as fronteiras demarcadas depois da crise dos anos 30 entre bancos comerciais, bancos de investimento, seguradoras e instituições de poupança (as savings and loans). Transformados agora em supermercados financeiros, os bancos cuidaram de avançar na “securitização” de créditos e se envolver no financiamento de posições nos mercados de capitais e em operações “fora do balanço” que envolvem a criação de bancos sombra. Isto suscitou a espiral de alavancagem e a crescente interpenetração de relações de débito e crédito na “cadeia alimentar” da finança. O avanço dessas inter-relações foi respaldado pela expansão do mercado interbancário global e pelo aperfeiçoamento dos sistemas de pagamentos. Os bancos de investimento e os demais bancos sombra aproximaram-se das funções monetárias dos bancos comerciais, abastecendo seus passivos nos “mercados atacadistas de dinheiro” (wholesale money markets), amparados nas aplicações de curto prazo de empresas e famílias. Nos anos 2000 a dívida intrafinanceira como proporção do PIB americano cresceu mais rapidamente do que o endividamento das famílias e das empresas. A interpenetração financeira suscitou a diversificação dos ativos à escala global e, assim, impôs a “internacionalização” das carteiras dos administradores da riqueza. Os Estados Unidos, beneficiados pela capacidade de atração de seu mercado financeiro amplo e profundo, absorveram desde meados dos anos 80 até a crise de 2008 um volume de capitais externos que superou com sobras os déficits acumulados em conta corrente. Em um mundo em que prevalece a mobilidade de capitais, a determinação não vai do déficit em conta corrente para a “poupança externa”. No epicentro das transformações das últimas décadas está o crescimento excepcional dos fluxos brutos de capital destinados aos Estados Unidos e intermediados, sobretudo pelos bancos europeus. Isso significa que as mudanças nas relações de débito e crédito e, portanto, nos patrimônios de bancos, empresas e famílias foram muito mais intensas do que as refletidas no déficit em conta corrente. A chamada “poupança externa” é uma ilusão contábil que esconde as relações de determinação macroeconômica: o movimento vai dos fluxos brutos de capitais para a expansão do crédito aos consumidores americanos, cujo gasto gera o déficit em conta corrente. No âmbito das novas relações “sino-americanas”, o circuito gasto-produção-renda-consumo pode ser apresentado da seguinte forma estilizada: fluxo bruto de capitais – expansão do crédito doméstico nos Estados Unidos - aceleração do gasto dos consumidores americanos - geração adicional de emprego e renda na China emergente – superávit comercial chinês amparado na exportação de manufaturas – acumulação de reservas (poupança financeira) - “financiamento final” do déficit americano em conta corrente. As inovações financeiras e a integração global das instituições de crédito promovem a exuberância do financiamento ao consumo das famílias que se entregam ao endividamento temerário. e, obviamente, a deterioração da qualidade dos balanços das instituições financeiras e das famílias devedoras. É esse “arranjo” que gera o déficit em conta corrente do balanço de pagamentos e não o contrário. O movimento de capitais irrigou o mercado financeiro americano e permitiu a manutenção de baixas taxas de juros nos títulos de longo prazo. A oferta de fundos baratos foi importante para financiar a metástase produtiva da grande empresa americana, europeia e japonesa para o Pacífico dos pequenos tigres e novos dragões. As novas manufaturas são produzidas no espaço econômico construído pelos asiáticos em torno da “grande montadora chinesa”. A enorme reserva de mão de obra, câmbio desvalorizado e abundância de investimento direto estrangeiro permitem à China estabelecer uma divisão do trabalho virtuosa com seus vizinhos. Ao mesmo tempo, o deslocamento das filiais americanas, europeias e japonesas em busca do global-sourcing obriga a economia nacional americana a ampliar o seu grau de abertura comercial e a gerar um déficit comercial crescente. Torna-se incontornável acomodar a expansão manufatureira e comercial dos novos parceiros, produzida em grande parte, mas não exclusivamente, pelo deslocamento do grande capital americano na busca de maior competitividade. Tesouro e Banco Central na Crise Financeira No período de euforia que antecedeu à crise, bancos comerciais, de investimento, administradores dos fundos de pensão, fundos mútuos, private equity funds, para não falar dos sofisticados fundos de hedge, escaparam às normas de racionalidade e aos critérios de avaliação de risco. Sucumbiram, na verdade, às forças impessoais do mimetismo competitivo, referidas na linguagem vulgar do mercadismo como “comportamento de manada”. O clima de “confiança”, como de hábito, disseminou o risco sistêmico que os sabichões imaginavam ter afastado com a utilização de derivativos. Nos últimos anos, a redução da volatilidade nos preços dos ativos e das moedas e a maior liquidez ensejaram a exasperação da “alavancagem”, desde os consumidores endoidecidos até os hedge funds escorados nas facilidades crédito bancário barato. Eis aí o paradoxo crucial da finança contemporânea: a “centralização privada” da moeda e crédito nas instituições “grandes demais para falir” alastrou – na esteira da integração global dos mercados financeiros - o processo competitivo de geração e distribuição de ativos lastreados em créditos imobiliários - asset backed securities - cuja precificação enigmática foi chancelada pelas famigeradas Agências de Classificação de Riscos. A euforia gerou o colapso. Quando a roda da fortuna gira em falso, a derrocada dos preços dos ativos impõe a “centralização” estatal, única providência capaz de estancar a destruição do crédito e da moeda, ou seja, da infraestrutura do mercado. Em uma crise financeira, como a que atravessamos, os títulos públicos dos países dominantes revelam sua natureza de “ativos de última instância”, abrigo em que encontra refrigério a angústia que se apodera das almas dos possuidores e controladores privados da riqueza. A crise foi deflagrada nos Estados Unidos e afetou gravemente seus mercados financeiros. No entanto, o socorro patrocinado pelo Federal Reserve e pelo Tesouro às instituições grandes demais para falir suscitou a “fuga para a qualidade”. Essa sôfrega busca da qualidade denuncia o privilégio exorbitante do país gestor da moeda-reserva e a hierarquia de moedas no sistema internacional. Até ontem danificados em sua credibilidade por suas próprias façanhas, os “mercados” foram revigorados por formidáveis injeções de dinheiro, uma espetacular “inflação” de passivos monetários do banco central. A grana foi distribuída generosamente sob uma forma “atípica” de cooperação entre os bancos centrais, outrora independentes e os tesouros nacionais, dantes austeros. Os primeiros abrigaram em seus balanços a escumalha financeira do subprime e adjacências, montaram programas de troca de papéis podres por passivos de sua emissão, ou seja, dinheiro, enquanto os tesouros emitiam títulos públicos para proteger a riqueza privada em estado periclitante. Epílogo As relações entre o Político e o Econômico - melhor, entre a Democracia e o Mercado – estão ordenadas de modo a remover quaisquer obstáculos à expansão do “poder privado” da finança. Os grandes bancos internacionalizados, sobretudo os bancos americanos, cuidaram de administrar à escala global a rede de relações débito-crédito. Assim, impuseram condições à gestão fiscal dos Estados Nacionais. Ao comandar a circulação de capitais entre as praças financeiras tornaram-se senhores dos “fundamentos econômicos” com poder de afetar a formação das taxas de juro e de câmbio. Esta submissão dos Estados aos ditames da finança globalizada foi acompanhada de mudanças na estrutura da propriedade e da concorrência, ou seja, os grandes bancos financiaram e organizaram o jogo da concentração patrimonial e produtiva. Esse processo levou consigo a apropriação da “racionalidade econômica” pelos senhores da finança. As decisões que outrora, no imediato pós-guerra, couberam às instâncias da política democrática passaram ao comando dos “mercados eficientes”. Os cuidados típicos da era anterior, a da “repressão financeira”, estavam voltados, sobretudo para a atenuação da instabilidade dos mercados de negociação dos títulos representativos de direitos sobre a riqueza e a renda. As políticas monetárias e de crédito eram orientadas no sentido de garantir condições favoráveis ao financiamento do gasto produtivo, público ou privado, e atenuar os efeitos da valorização fictícia da riqueza sobre as decisões de gasto corrente e de investimento da classe capitalista. Tratava-se de evitar ciclos de valorização excessiva e desvalorizações catastróficas dos estoques da riqueza financeira já existente. O sociólogo e economista Wolfgang Streek, diretor do Instituto Max Plank, aponta a origem da “transferência de poder” na estagflação dos anos 70. Neste momento, o arranjo social e econômico das décadas anteriores foi desmanchado em nome da remoção dos entraves à livre operação dos mercados. A transição, diz Streek, configurou “a passagem do Estado Fiscal para o Estado da Dívida e, finalmente, para o atual Estado de Austeridade. As causas dessas mudanças foram as novas oportunidades de evasão fiscal aliadas à extorsão de isenções de impostos, vantagens oferecidas às grandes empresas e aos endinheirados pela globalização financeira. As tentativas de reduzir os déficits fiscais apoiaram-se quase exclusivamente no corte de despesas- sobretudo na seguridade social, na educação e na infraestrutura física. Os ganhos de renda correram para a camada superior, aquela que abriga os felizardos 1% da pirâmide distributiva. Nessa toada, a dimensão pública das economias capitalistas capitulou, não raro dramaticamente, diante do poder e da mobilidade da riqueza oligárquica”. Os mercados financeiros, lograram capturar os controles da economia e do Estado, mediante o aumento do seu poder social. A nova finança e sua lógica notabilizaram-se por sua capacidade de impor vetos às políticas macroeconômicas, mesmo quando se revelam incapazes de curar suas próprias mazelas. A despeito do socorro prestado pelos Bancos Centrais às suas imprudências e incompetências, do desemprego e da desigualdade escandalosa, as ações dos governos sofrem fortes resistências das casamatas instaladas nos quartéis da finança contemporânea. A globalização ao tornar mais livre o espaço de circulação da riqueza e da renda dos grupos privilegiados, desarticulou a velha base tributária na qual prevaleciam os impostos diretos sobre a renda e a riqueza. A ação do Estado, particularmente sua prerrogativa fiscal, é contestada, ademais, pelo intenso processo de homogeneização ideológica de celebração do individualismo que se opõe a qualquer interferência no processo de diferenciação da riqueza, da renda e do consumo efetuado através do mercado capitalista. Luiz Gonzaga Belluzzo é ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Este artigo, publicado originariamente na agência brasileira de notícias Carta Maior, é uma síntese dos trabalhos recentes já publicados.
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