“A despeito do descontentamento dos (norte-)americanos com as instituições, os Estados Unidos são uma democracia madura. Os riscos de retrocessos e ações truculentas do presidente, que firam espírito da Constituição, são menores", diz Latif.
Por Redação - de São Paulo
O presidente Jair Bolsonaro e a equipe econômica passam por um momento de inflexão, diante da possibilidade de o democrata Joe Biden chegar à Casa Branca. ”O fato de estar tão apreensivo com o resultado da eleição norte-americana, apesar de o Brasil ser pouco relevante na arena externa daquele país, é mais um fator a denunciar o vazio de seu governo”, afirma a a consultora Zeina Latif, doutora em Economia pela Universidade do Estado de São Paulo (USP).
No artigo publicado nesta quinta-feira, sob o título Aqui, a música é outra, Zeina Latif ressalta que “a sociedade (norte-)americana valoriza as liberdades individuais e isso se refletiu na construção do Estado, ao se evitar dar poderes excessivos ao chefe do Executivo. Esse aspecto foi reforçado historicamente pelo funcionamento de freios e contrapesos para conter excessos de governantes. Como resultado, há menos intervencionismo estatal e, assim, menor dependência da economia na ação governamental”.
“A despeito do descontentamento dos (norte-)americanos com as instituições, os Estados Unidos são uma democracia madura. Os riscos de retrocessos e ações truculentas do presidente, que firam espírito da Constituição, são menores. Não há complacência das instituições democráticas. Exemplo disso foi a aprovação do impeachment do presidente Trump na Câmara dos Deputados. Não passou no Senado, mas o recado foi dado”, acrescentou.
Trump, segundo a consultora, “se encaixa bem na figura de falastrão. Ainda que não se possa escrever em pedra promessas de campanha (nem nos Estados Unidos), o fato é que não seria justo acusá-lo de inação ou de trair seus compromissos. Enquanto isso, as instituições funcionam”.
Guerra comercial
“Propostas que dependem do Congresso enfrentaram dificuldades ou até foram inviabilizadas. A redução da carga de impostos sobre empresas ficou aquém do prometido. Não foi aceita a dotação de recursos para construir o muro na fronteira com o México, sendo a resposta do congresso o mais longo shutdown – interrupção de serviços públicos por falta de acordo no congresso sobre o orçamento – da história (norte)americana. Não conseguiu revogar o Obamacare e substituí-lo por uma redução de custos com planos de saúde, mesmo sendo aquele programa controverso”.
Latif ressalta, ainda, que “houve retrocessos na agenda multilateral, trazendo prejuízo ao comércio mundial. Porém, não foi decisão isolada de Trump. Ele acerta quando critica as falhas dos organismos internacionais. A Organização Mundial do Comércio (OMC), por exemplo, tem sido complacente com China em relação à adesão às regras de propriedade intelectual e governança. Outro ponto é que o embate com a China é um tema de Estado, e não de governo. Os democratas questionam a estratégia e o estilo de Trump, mas não sua motivação. Mesmo no caso de vitória de Joe Biden, haverá outros capítulos da guerra comercial entre esses países”.
“Trump reduziu várias regulações estatais. Ele propôs algo que, em princípio, cairia muito bem ao Brasil: para cada nova regulação federal solicitada por um departamento de governo, outras duas teriam de cair. Mesmo quando não é necessária a deliberação do Congresso, temas mais polêmicos enfrentam reações contrárias. A maior preocupação recai na legislação ambiental, que vai ao encontro da decisão de os Estados Unidos saírem do acordo de Paris, sendo o país que mais emite gases do efeito estufa per capita. Não está claro o tamanho do impacto e do retrocesso”, ressalta.
Agenda reformista
A colunista do diário conservador paulistano O Estado de S. Paulo (OESP), que publica o artigo em sua coluna dessa semana, sublinha ser “importante mencionar que a questão ambiental será um ponto onde haverá inflexão no caso de vitória de Biden, o que repercutirá no Brasil. A disputa acirrada nesta eleição, apesar das críticas à gestão da crise de saúde, sugere que, quem quer que seja o vencedor, enfrentará dificuldades internas. Nesse sentido, talvez o pior legado de Trump foi ter alimentado a polarização da sociedade”.
“No Brasil, a banda toca diferente. O Executivo tem maior poder, por seus vários tentáculos na economia. A volta do crescimento depende de muitas reformas que precisam ser enfrentadas pelo governo, reformulando a intervenção estatal. Uma combinação que aumenta a responsabilidade do presidente, especialmente com o Congresso fragmentado e vulnerável à pressão de grupos organizados, que muitas vezes acabam atrapalhando e manipulando o debate público. Somos uma democracia menos madura e com instituições mais frágeis” acentua.
Enquanto isso, resume a economista, “Bolsonaro parece não compreender o tamanho dessa responsabilidade e dos riscos à frente, e frustra eleitores ao desprezar a agenda econômica reformista. O fato de estar tão apreensivo com o resultado da eleição norte-americana, apesar de o Brasil ser pouco relevante na arena externa daquele país, é mais um fator a denunciar o vazio de seu governo”.